TRINDADE: O DOGMA DE CONSTANTINO?
A base bíblica
da doutrina da Trindade foi apresentada por escritores que precederam o
Concílio de Nicéia
argumento é muito claro e
não há como interpretá-lo equivo-cadamente: "O Concílio de Ni-céia deu
origem à crença em três deuses. A crença na trindade de pessoas divinas não
teve origem na Bí-blia, mas no Concílio ou Sínodo de Nicéia, o primeiro
concílio ecumênico da História, no qual participaram 318 bispos, no ano 325 da
era cristã." A co-locação das aspas mostra que essas pa¬lavras não
pertencem ao autor deste artigo, mas a influentes adeptos do chamado"
antitrinitarianismo':
Se esta conclusão for
verdadeira, a situação se agravará ainda mais ao sa¬bermos que foi Constantino
quem convocou esse concílio. Seria, portan-to, esse mesmo homem que promul-gou
a primeira lei dominical o "pai do dogma da Trindade"? Se for, então
a crença em um Deus triúno seria tão herética quanto a guarda do domingo, pois
ambas viriam da mesma fonte.
Excelentes estudos
mostrando a base bíblica da doutrina da Trindade já foram apresentados pela
Igreja. O fato de alguns não os aceitarem como válidos não deveria nos
assombrar, pois há anos os adventistas têm mos-trado a base bíblica da guarda
do sá-bado e, de igual modo, muitos evan-gélicos também insistem em dizer que
não há, no Novo Testamento, nada que nos obrigue a guardar a Lei. Logo, o fato
de alguns não aceitarem deter-minadas argumentações bíblicas não significa que
elas não existam.
O objetivo deste artigo é
averi¬guar se a afirmação de que a Trindade é um "dogma" de
Constantino proce¬de à luz da História. Para isso, é neces¬sário que recorramos
aos escritos dos primeiros cristãos que viveram entre os séculos 11 e III, isto
é, imediata¬mente depois do período apostólico e antes do Concílio de Nicéia. A
lógica é simples: se o argumento antitrinitário estiver certo, ou seja, se a
Trindade é mesmo uma doutrina forjada por Constantino, não encontraremos nes¬se
período inicial nenhuma defesa àidéia de um Deus triúno. Ao contrá¬rio, o
ensinamento da época deveráser bem diferente, afirmando que Cristo é apenas um
segundo ser gera¬do do Pai e o Espírito uma emanação impessoal de ambos.
Pais da Igreja - Os
primeiros escrito¬res do período pós-apostólico são co-mumente chamados
"Pais da Igreja". Antes de ver o que eles pensavam so¬bre esse
assunto, é importante ressal¬tar quatro elementos em seus ensinos:
1. Testemunham a maneira
de a Igreja primitiva entender certas pas-sagens das Escrituras, e isso é muito
bom, pois não estavam ainda influen-ciados pela grande apostasia da Igre¬ja de
Roma e poderiam nos dar uma visão mais desanuviada das doutrinas apostólicas.
Afinal, alguns deles co-nheceram pessoalmente os apóstolos ou algum discípulo
direto deles; além disso, nem o catolicismo romano nem o papado
institucionalizado existiam em seu tempo para interferir em seus escritos.
2. A despeito de seu
grande valor testemunhal, eles não devem ser usa¬dos como fonte de doutrina. A
fonte básica e única da fé cristã continua sendo a Bíblia. Quaisquer escritos
posteriores servirão apenas para faci¬litar a compreensão do que está no Santo
Livro e não para produzir no¬vas doutrinas.
3. Seu valor está
representado profeticamente na carta apocalíptica à Igreja de Esmirna, pois foi
nesse pe¬ríodo que eles viveram. Note que ne¬nhuma repreensão é apresentada em
relação aos cristãos daquele tempo. Pelo contrário, sua fé é elogiada com muito
vigor, pois muitos deles tive¬ram que assinar seu testemunho com o sangue de
seu martírio.
4. É importante repetir
que o proposto deste artigo não é endossar indiscriminadamente toda a doutrina
dos Pais da Igreja, mas verificar, pelo seu testemunho, se a Trindade era
cri¬da na igreja primitiva ou se, como di¬zem alguns, seria fruto apenas do
Concílio de Nicéia. Com esses elementos em mente, estamos prontos para
pesquisar o que os cristãos primitivos criam a respeito de Deus Pai, do Filho e
do Espírito Santo.
Antes de Nicéia - Uma
rápida verifi-cação no index geral das obras Ante-Nicene Pathers e da Sources
Chrétien-nes', que formam a coleção de todos os escritores cristãos mais
antigos {inclusive os anteriores a Nicéia), nos mostra que, muito antes do
con¬cílio, a crença na Trindade já havia sido sistematizada entre os cristãos.
Aliás, o próprio termo "Trindade" foi usado em 212 d.e. por
Tertulia¬no, ou seja, 113 anos antes de Nicéia! Falando da Igreja de Deus, ele
menciona o Espírito "no qual está a Trin-dade de uma Divindade: Pai, Filho
e Espírito Santo"2
Clemente de Roma, que
viveu no fim do primeiro século, escreveu por volta do ano 96 uma carta de
confor¬to aos cristãos de Corinto, que esta¬vam sendo perseguidos por
Domi¬ciano (o mesmo imperador que de¬portou João para a ilha de Patmos). Ao
falar da união da Igreja, ele diz: "Não temos nós [todos] um único Deus e
um único Cristo? E não há um único Espírito da Graça derra¬mado sobre
nós?"3 Embora este não seja um texto de "defesa" da Trinda¬de,
chama-nos a atenção sua "lingua¬gem trinitária", que subtende uma
idéia triúna de Deus. Seja como for, os outros autores são ainda mais cla¬ros
em sua exposição.
Inácio, o segundo
sucessor de Pe-dro como pastor em Antioquia, tam-bém acreditava na doutrina da
Trin-dade. Pelo que se sabe, foi martiriza¬do no reinado de Trajano, em 105
d.e. Nessa época de perseguição à Igreja, ele escreveu uma epístola aos
cristãos da Trália, dizendo-lhes que, a despeito do sofrimento, continuas¬sem
"em íntima união com Jesus Cristo, o nosso Deus':4 Em outro ma¬nuscrito,
onde uma versão mais lon¬ga é preservada, o mesmo autor ad¬verte os irmãos
contra aqueles que ensinavam doutrinas contrárias à fé dos apóstolos. Entre
seus ensinos equivocados, estaria a idéia de que "o Espírito Santo não
existe" e que "o Pai, o Filho e o Espírito Santo seriam a mesma
pessoa".5
Justino, cognominado
"o Mártir", foi outro que escreveu várias apolo¬gias em favor do
Cristianismo e con¬tra a filosofia grega. Num de seus tex¬tos, escrito por
volta de 160 d.e., ele diz: "Já que somos considerados ateus, admitimos
nosso ateísmo em relação a esses [vários] tipos de deuses [do politeísmo]. Mas,
no que diz res¬peito ao verdadeiro Deus, o Pai da justiça e temperança ..., ao
Filho, ... e ao Espírito Profético, [saibam que] nós os adoramos e
reverenciamos."6
Atenágoras, também
responden¬do à acusação de serem os cristãos chamados de ateus por não
aceitarem o politeísmo pagão, escreveu em 175 d.e.: "Ora, quem não ficaria
perplexo em ouvir chamar de ateus pessoas que pregam de Deus o Pai, de Deus o
Filho e do Espírito Santo e que decla¬ram serem um no poder, mas distin¬tos na
ordem?"7 Continuando com Atenágoras, temos esta elucidativa declaração:
"Os cristãos reconhecem a Deus e a
Seu Logos. Eles também reconhecem o tipo de unicidade que o Filho tem com o Pai
e que tipo de comunhão o Pai tem com o Filho. Ademais, eles sabem o que é o
Espíri¬to e que a unidade é [formada] destes três: O Espírito, o Filho e o
Pai."8 "Nós reconhecemos um Deus, um Filho e um Espírito Santo, os
quais são unidos na essência."9
Teófilo, que seguiu a
Inácio em Antioquia, fez bela comparação poé¬tica com o Gênesis, ao afirmar que
"os três dias que estão antes dos três lumi¬nares [da Criação] são tipos
da triuni¬dade de Deus".1O
Ireneu de Lion é outro
importan¬te autor desse período. Convertido na adolescência, foi discípulo de
Policar-po que, por sua vez, foi discípulo do apóstolo João. Sua principal
obra, inti-tulada Contra Heresias, dispõe de cin-co volumes e foi escrita por
volta de 177 d.e. Respondendo às idéias gnós-ticas de seu tempo, ele toma o
cuidado de diferenciar, por exemplo, o "fôlego [ espírito] de vida"
dado às criaturas em geral, do "Espírito Santo", que é Deus habitando
com o crenteY
Explicando ainda que Deus
é diferente dos homens, ele fala da Palavra e da Sabedoria do Criador como sendo
duas pessoas divinas unidas a uma terceira (o Pai) numa única divindade. 12
Hipólito (c. 205 d.e.),
autor do mais antigo comentário de Daniel de que dispomos em nosso tempo,
dis¬se que "a Terra é movida por estes três: O Pai, o Filho e o Espírito
San¬to".13 Noutra passagem, depois de ci¬tar a fórmula batismal em nome do
Pai, do Filho e do Espírito, ele de¬monstra que já no seu tempo havia os que
negavam essa doutrina, pois diz: "Qualquer um que omitir um destes três,
falha em glorificar a Deus de um modo perfeito. Pois é através desta triunidade
que o Pai é glorificado."14
Esses são apenas alguns
exemplos de muitos que poderiam ter sido cita-dos. Orígenes, Cipriano,
Finniliano e Dionísio de Alexandria são outros auto¬res que também criam na
Trindade muito antes da chegada de Constantino.
John Andrews também
pensou, equivocadamente, que a Trindade houvesse surgido em Nicéia.15 Mas,
apesar do respeito inconteste que se tenha por esse grande pioneiro,
per-cebe-se pelos textos citados que, neste contexto, sua afirmação não está
correta. 16 o que ocorreu em Nicéia - Por vol-ta de 325, a Igreja estava
dividida por uma polêmica teológica iniciada no Egito. Um grupo, liderado por
Ário e Eusébio de Nicomédia, ensinava que Cristo era um sem i-deus
"seme¬lhante", mas não totalmente igual ao Pai. Outro, liderado por
Alexandre, ex-bispo de Ário e por Atanásio, via nisso uma aproximação muito
peri¬gosa do gnosticismo divulgado no Egito. Eles lembravam que a confis¬são
mais antiga dos cristãos dizia que Cristo está em pé de igualdade com o Pai. Já
um terceiro grupo, li¬derado por Eusébio de Cesaréia (um adulador de
Constantino, segundo Elen Whitel7), via com neutralidade a questão e preferia
propor com ur¬gência uma declaração que abarcasse os dois lados.
Os seguidores de Eusébio
que¬riam, a todo custo, pôr um fim à dis¬puta, não porque estivessem
preocu¬pados com a ortodoxia da doutrina, mas porque temiam que, àquela altu¬ra
dos acontecimentos, uma disputa teológica fizesse a Igreja perder os
privilégios que Constantino estava promovendo.
Ao contrário do que
muitos pensam, o próprio imperador não tinha interesse algum em
"promulgar" uma doutrina trinitária para a Igreja. Se este fosse o
seu intento, ele não preci¬saria convocar um concílio. Bastava repetir o ato de
quatro anos antes, quando promulgou o decreto domi¬nical, e assinar um edito
ordenando a todos que adorassem ao Deus triúno.
Se quisermos ser honestos
com a verdade dos fatos, devemos lembrar que Constantino nem possuía conhecimento
bíblico suficiente para se po-sicionar diante dequela controvérsia. Aliás, a
carta por ele enviada através do bispo Hósio de Córdova, dizia que o problema
que estavam discutindo acerca da natureza de Cristo era "uma questão sem
proveito': 18
Foram os bispos que o
convence-ram a convocar o Concílio para resol-ver a questão. Mas o que poucos
sa-bem é que o partido de Alexandre, o partido trinitariano, era o mais fraco
em termos políticos. Foi um verdadei¬ro milagre que o texto de Nicéia não
favorecesse o arianismo. Tanto é que, embora os arianos tivessem sido
der-rotados no Concílio, os partidários de Eusébio de Nicomédia empreende¬ram
uma verdadeira campanha, após Nicéia, para derrotar Atanásio e res-taurar Ario
ao poder.
O mais surpreendente é
que, pro-tegido pelo imperador, Ario começou aos poucos a reconquistar seu
poder e a exercer influência em assuntos polí-ticos. Eusébio, por sua vez,
convenceu Constantino a enviar Atanásio para o desterro e a recolocar Ario no
posto de líder da Igreja - o que quase acon-teceu, se não fosse o falecimento
de Ario na noite anterior à da cerimônia de investidura, em 336 d.e. Assim, o
plano era que o imperador convocas¬se um novo Concílio e desse ganho de causa
aos ananos.
Sob tais circunstâncias,
a fé trini-tária parecia, se não oficialmente re-negada, praticamente
condenada, principalmente depois que Constan¬tino declarou seu desejo de ser
batiza¬do por Eusébio, em um ritual antitri¬nitariano, evidentemente. A chamada
fé nicena só não chegou ao fim por¬que Constantino acabou morrendo em 22 de
maio de 337, poucos dias depois de ser batizado.
Dois últimos aspectos
ainda pre-cisam ser esclarecidos: a grande dis-cussão do Concílio de Nicéia não
era, em primeiro lugar, a Trindade, mas a natureza de Cristo em relação ao Pai.
Foi somente no credo de Atanásio, produzido posteriormente, que o as-sunto
"Trindade" apareceu de modo mais claro. Além disso, é importante
notar que o credo niceno não diz nada quanto ao Espírito Santo ser ou; não uma
pessoa. A literatura antitrinitária procura confundir o leitor apresentando
como credo niceno o que na verdade é o credo niceno-constantinopolitano de 381,
procla-mado depois da morte de Constanti-no.19
A idéia do credo niceno,
como foi dito, parecia ser a de formular um texto enxuto, sem muitas
explicações e que agradasse ao máximo a todos os partidos. Seu conteúdo, no
entanto, terminou incomodando os arianos por apresentar Cristo como
consubs¬tancial ao Pai.
Portanto, vê-se como
infundada a declaração de que Constantino se¬ria o pai da doutrina trinitariana
usa¬da para atrair o politeísmo para a Igreja. Pelo contrário, Ario e Eusébio é
que traziam uma doutrina politeís¬ta, pois apresentavam a Cristo como um
"segundo" deus, menor que o Pai, mas igualmente divino e que se assemelhava
muito ao chamado "Demiurgo", ou seja, um deus menor I
que, segundo o
gnosticismo do Egi¬to, fora usado pelo deus maior para trazer o mundo à
existência. Isto, sim, pode ser classificado de politeís¬mo. Pena que muitos
insistam emnão entender!
Referências:
I.
Roberts, A., e Donaldson, J., [eds] Ant~icene FalheTS, New York: Charles
Scribner's Sons, 1913. Esta
coleçao antiga traz uma traduçao em inglês dos textos patristicos. Lubac, H.,
Damielou, eL all~ Sour¬ces ChréIiennes, Paris, Ies édition du Cert, 194155.,
esta é a mais im¬portante coleçao de textos dos Pais da Igreja. Traz o texto
original em grego, latim, copta &. ladeado de uma tradtJÇao para o fran¬cês.
Além disso, apresenta as variantes que possam existir entre um e outro
manuscrito. Salvo indicações em contrário, vamos seguir
aqui a numeraçao da Ante-Nicene Fothers.
2. Tertuliano, Sobre a
Modéstia. XXI.
3. Clemente, I Eplstola
aos Corlntios, XLVI.
4. lnáeio, EpIstoIa aos
Tro/ionos, VII (recensao cultl).
5.lbidem (rec~o longa).
6. Justino, I Apologia,
VI.
7. Atenágoras, Súplica
pelos Cristõos, x.
8.lbidem, XI.
9.lbidem, XXIII.
10. Teófilo, A Autó/íco,
'/N.
11. lreneu, Contra
Heresias. v. 2.
12. a. lreneu, Contra
Heresias. IV, xx. 2.
13. Hipól~o: Fragmentos
de Comentórios, 10 (ANF, vai. 5, pág. 174). 14. Hipól~, Contra Noeto, 14.
15. Andrews, J. N. Mvent
Review. 6 de março de 1855 [vaI. 6, n' 24,
pág. 185].
16. ~ a.rioso notar que em sua obra HisIoty 01 Sobboth
publicada poste¬
rionnente em 1887, Andrews om~ a "trindade" da
rlSla de "heresias
romanas" que aáentraram a Igreja no IV século. a. págs.
193-204.
17. WMe, E. G., O Grande
conflfto, Tatul, SP: Casa Publicaóora Brasilei¬
ra, 1996, pág. 580.
18. Uma reproduçao da
caltl óe Constantino pode ser encontrada em
Eusébio de Cesaréia. IfHfo de Constonâno. 11. 64-n.
19. Um exemplo está no
livro de Ricardo Nícotra, f1J e o Pai somos um,
5ao Paulo, 2004, pág. 88.
Rodrigo P. Silva, Th.D.,
é professor de Novo Testamento no Unasp, campus Engenheiro
Revista Adventista, julho
2005
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