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domingo, 10 de agosto de 2014

ARTIGOS SOBRE A TRINDADE - TRINDADE: O DOGMA DE CONSTANTINO?



TRINDADE: O DOGMA DE CONSTANTINO?
A base bíblica da doutrina da Trindade foi apresentada por escritores que precederam o Concílio de Nicéia

argumento é muito claro e não há como interpretá-lo equivo-cadamente: "O Concílio de Ni-céia deu origem à crença em três deuses. A crença na trindade de pessoas divinas não teve origem na Bí-blia, mas no Concílio ou Sínodo de Nicéia, o primeiro concílio ecumênico da História, no qual participaram 318 bispos, no ano 325 da era cristã." A co-locação das aspas mostra que essas pa¬lavras não pertencem ao autor deste artigo, mas a influentes adeptos do chamado" antitrinitarianismo':

Se esta conclusão for verdadeira, a situação se agravará ainda mais ao sa¬bermos que foi Constantino quem convocou esse concílio. Seria, portan-to, esse mesmo homem que promul-gou a primeira lei dominical o "pai do dogma da Trindade"? Se for, então a crença em um Deus triúno seria tão herética quanto a guarda do domingo, pois ambas viriam da mesma fonte.

Excelentes estudos mostrando a base bíblica da doutrina da Trindade já foram apresentados pela Igreja. O fato de alguns não os aceitarem como válidos não deveria nos assombrar, pois há anos os adventistas têm mos-trado a base bíblica da guarda do sá-bado e, de igual modo, muitos evan-gélicos também insistem em dizer que não há, no Novo Testamento, nada que nos obrigue a guardar a Lei. Logo, o fato de alguns não aceitarem deter-minadas argumentações bíblicas não significa que elas não existam.

O objetivo deste artigo é averi¬guar se a afirmação de que a Trindade é um "dogma" de Constantino proce¬de à luz da História. Para isso, é neces¬sário que recorramos aos escritos dos primeiros cristãos que viveram entre os séculos 11 e III, isto é, imediata¬mente depois do período apostólico e antes do Concílio de Nicéia. A lógica é simples: se o argumento antitrinitário estiver certo, ou seja, se a Trindade é mesmo uma doutrina forjada por Constantino, não encontraremos nes¬se período inicial nenhuma defesa àidéia de um Deus triúno. Ao contrá¬rio, o ensinamento da época deveráser bem diferente, afirmando que Cristo é apenas um segundo ser gera¬do do Pai e o Espírito uma emanação impessoal de ambos.

Pais da Igreja - Os primeiros escrito¬res do período pós-apostólico são co-mumente chamados "Pais da Igreja". Antes de ver o que eles pensavam so¬bre esse assunto, é importante ressal¬tar quatro elementos em seus ensinos:
1. Testemunham a maneira de a Igreja primitiva entender certas pas-sagens das Escrituras, e isso é muito bom, pois não estavam ainda influen-ciados pela grande apostasia da Igre¬ja de Roma e poderiam nos dar uma visão mais desanuviada das doutrinas apostólicas. Afinal, alguns deles co-nheceram pessoalmente os apóstolos ou algum discípulo direto deles; além disso, nem o catolicismo romano nem o papado institucionalizado existiam em seu tempo para interferir em seus escritos.
2. A despeito de seu grande valor testemunhal, eles não devem ser usa¬dos como fonte de doutrina. A fonte básica e única da fé cristã continua sendo a Bíblia. Quaisquer escritos posteriores servirão apenas para faci¬litar a compreensão do que está no Santo Livro e não para produzir no¬vas doutrinas.
3. Seu valor está representado profeticamente na carta apocalíptica à Igreja de Esmirna, pois foi nesse pe¬ríodo que eles viveram. Note que ne¬nhuma repreensão é apresentada em relação aos cristãos daquele tempo. Pelo contrário, sua fé é elogiada com muito vigor, pois muitos deles tive¬ram que assinar seu testemunho com o sangue de seu martírio.
4. É importante repetir que o proposto deste artigo não é endossar indiscriminadamente toda a doutrina dos Pais da Igreja, mas verificar, pelo seu testemunho, se a Trindade era cri¬da na igreja primitiva ou se, como di¬zem alguns, seria fruto apenas do Concílio de Nicéia. Com esses elementos em mente, estamos prontos para pesquisar o que os cristãos primitivos criam a respeito de Deus Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Antes de Nicéia - Uma rápida verifi-cação no index geral das obras Ante-Nicene Pathers e da Sources Chrétien-nes', que formam a coleção de todos os escritores cristãos mais antigos {inclusive os anteriores a Nicéia), nos mostra que, muito antes do con¬cílio, a crença na Trindade já havia sido sistematizada entre os cristãos. Aliás, o próprio termo "Trindade" foi usado em 212 d.e. por Tertulia¬no, ou seja, 113 anos antes de Nicéia! Falando da Igreja de Deus, ele menciona o Espírito "no qual está a Trin-dade de uma Divindade: Pai, Filho e Espírito Santo"2

Clemente de Roma, que viveu no fim do primeiro século, escreveu por volta do ano 96 uma carta de confor¬to aos cristãos de Corinto, que esta¬vam sendo perseguidos por Domi¬ciano (o mesmo imperador que de¬portou João para a ilha de Patmos). Ao falar da união da Igreja, ele diz: "Não temos nós [todos] um único Deus e um único Cristo? E não há um único Espírito da Graça derra¬mado sobre nós?"3 Embora este não seja um texto de "defesa" da Trinda¬de, chama-nos a atenção sua "lingua¬gem trinitária", que subtende uma idéia triúna de Deus. Seja como for, os outros autores são ainda mais cla¬ros em sua exposição.

Inácio, o segundo sucessor de Pe-dro como pastor em Antioquia, tam-bém acreditava na doutrina da Trin-dade. Pelo que se sabe, foi martiriza¬do no reinado de Trajano, em 105 d.e. Nessa época de perseguição à Igreja, ele escreveu uma epístola aos cristãos da Trália, dizendo-lhes que, a despeito do sofrimento, continuas¬sem "em íntima união com Jesus Cristo, o nosso Deus':4 Em outro ma¬nuscrito, onde uma versão mais lon¬ga é preservada, o mesmo autor ad¬verte os irmãos contra aqueles que ensinavam doutrinas contrárias à fé dos apóstolos. Entre seus ensinos equivocados, estaria a idéia de que "o Espírito Santo não existe" e que "o Pai, o Filho e o Espírito Santo seriam a mesma pessoa".5

Justino, cognominado "o Mártir", foi outro que escreveu várias apolo¬gias em favor do Cristianismo e con¬tra a filosofia grega. Num de seus tex¬tos, escrito por volta de 160 d.e., ele diz: "Já que somos considerados ateus, admitimos nosso ateísmo em relação a esses [vários] tipos de deuses [do politeísmo]. Mas, no que diz res¬peito ao verdadeiro Deus, o Pai da justiça e temperança ..., ao Filho, ... e ao Espírito Profético, [saibam que] nós os adoramos e reverenciamos."6

Atenágoras, também responden¬do à acusação de serem os cristãos chamados de ateus por não aceitarem o politeísmo pagão, escreveu em 175 d.e.: "Ora, quem não ficaria perplexo em ouvir chamar de ateus pessoas que pregam de Deus o Pai, de Deus o Filho e do Espírito Santo e que decla¬ram serem um no poder, mas distin¬tos na ordem?"7 Continuando com Atenágoras, temos esta elucidativa declaração: "Os cristãos  reconhecem a Deus e a Seu Logos. Eles também reconhecem o tipo de unicidade que o Filho tem com o Pai e que tipo de comunhão o Pai tem com o Filho. Ademais, eles sabem o que é o Espíri¬to e que a unidade é [formada] destes três: O Espírito, o Filho e o Pai."8 "Nós reconhecemos um Deus, um Filho e um Espírito Santo, os quais são unidos na essência."9

Teófilo, que seguiu a Inácio em Antioquia, fez bela comparação poé¬tica com o Gênesis, ao afirmar que "os três dias que estão antes dos três lumi¬nares [da Criação] são tipos da triuni¬dade de Deus".1O

Ireneu de Lion é outro importan¬te autor desse período. Convertido na adolescência, foi discípulo de Policar-po que, por sua vez, foi discípulo do apóstolo João. Sua principal obra, inti-tulada Contra Heresias, dispõe de cin-co volumes e foi escrita por volta de 177 d.e. Respondendo às idéias gnós-ticas de seu tempo, ele toma o cuidado de diferenciar, por exemplo, o "fôlego [ espírito] de vida" dado às criaturas em geral, do "Espírito Santo", que é Deus habitando com o crenteY
Explicando ainda que Deus é diferente dos homens, ele fala da Palavra e da Sabedoria do Criador como sendo duas pessoas divinas unidas a uma terceira (o Pai) numa única divindade. 12

Hipólito (c. 205 d.e.), autor do mais antigo comentário de Daniel de que dispomos em nosso tempo, dis¬se que "a Terra é movida por estes três: O Pai, o Filho e o Espírito San¬to".13 Noutra passagem, depois de ci¬tar a fórmula batismal em nome do Pai, do Filho e do Espírito, ele de¬monstra que já no seu tempo havia os que negavam essa doutrina, pois diz: "Qualquer um que omitir um destes três, falha em glorificar a Deus de um modo perfeito. Pois é através desta triunidade que o Pai é glorificado."14

Esses são apenas alguns exemplos de muitos que poderiam ter sido cita-dos. Orígenes, Cipriano, Finniliano e Dionísio de Alexandria são outros auto¬res que também criam na Trindade muito antes da chegada de Constantino.
John Andrews também pensou, equivocadamente, que a Trindade houvesse surgido em Nicéia.15 Mas, apesar do respeito inconteste que se tenha por esse grande pioneiro, per-cebe-se pelos textos citados que, neste contexto, sua afirmação não está correta. 16 o que ocorreu em Nicéia - Por vol-ta de 325, a Igreja estava dividida por uma polêmica teológica iniciada no Egito. Um grupo, liderado por Ário e Eusébio de Nicomédia, ensinava que Cristo era um sem i-deus "seme¬lhante", mas não totalmente igual ao Pai. Outro, liderado por Alexandre, ex-bispo de Ário e por Atanásio, via nisso uma aproximação muito peri¬gosa do gnosticismo divulgado no Egito. Eles lembravam que a confis¬são mais antiga dos cristãos dizia que Cristo está em pé de igualdade com o Pai. Já um terceiro grupo, li¬derado por Eusébio de Cesaréia (um adulador de Constantino, segundo Elen Whitel7), via com neutralidade a questão e preferia propor com ur¬gência uma declaração que abarcasse os dois lados.

Os seguidores de Eusébio que¬riam, a todo custo, pôr um fim à dis¬puta, não porque estivessem preocu¬pados com a ortodoxia da doutrina, mas porque temiam que, àquela altu¬ra dos acontecimentos, uma disputa teológica fizesse a Igreja perder os privilégios que Constantino estava promovendo.

Ao contrário do que muitos pensam, o próprio imperador não tinha interesse algum em "promulgar" uma doutrina trinitária para a Igreja. Se este fosse o seu intento, ele não preci¬saria convocar um concílio. Bastava repetir o ato de quatro anos antes, quando promulgou o decreto domi¬nical, e assinar um edito ordenando a todos que adorassem ao Deus triúno.

Se quisermos ser honestos com a verdade dos fatos, devemos lembrar que Constantino nem possuía conhecimento bíblico suficiente para se po-sicionar diante dequela controvérsia. Aliás, a carta por ele enviada através do bispo Hósio de Córdova, dizia que o problema que estavam discutindo acerca da natureza de Cristo era "uma questão sem proveito': 18

Foram os bispos que o convence-ram a convocar o Concílio para resol-ver a questão. Mas o que poucos sa-bem é que o partido de Alexandre, o partido trinitariano, era o mais fraco em termos políticos. Foi um verdadei¬ro milagre que o texto de Nicéia não favorecesse o arianismo. Tanto é que, embora os arianos tivessem sido der-rotados no Concílio, os partidários de Eusébio de Nicomédia empreende¬ram uma verdadeira campanha, após Nicéia, para derrotar Atanásio e res-taurar Ario ao poder.

O mais surpreendente é que, pro-tegido pelo imperador, Ario começou aos poucos a reconquistar seu poder e a exercer influência em assuntos polí-ticos. Eusébio, por sua vez, convenceu Constantino a enviar Atanásio para o desterro e a recolocar Ario no posto de líder da Igreja - o que quase acon-teceu, se não fosse o falecimento de Ario na noite anterior à da cerimônia de investidura, em 336 d.e. Assim, o plano era que o imperador convocas¬se um novo Concílio e desse ganho de causa aos ananos.
Sob tais circunstâncias, a fé trini-tária parecia, se não oficialmente re-negada, praticamente condenada, principalmente depois que Constan¬tino declarou seu desejo de ser batiza¬do por Eusébio, em um ritual antitri¬nitariano, evidentemente. A chamada fé nicena só não chegou ao fim por¬que Constantino acabou morrendo em 22 de maio de 337, poucos dias depois de ser batizado.

Dois últimos aspectos ainda pre-cisam ser esclarecidos: a grande dis-cussão do Concílio de Nicéia não era, em primeiro lugar, a Trindade, mas a natureza de Cristo em relação ao Pai. Foi somente no credo de Atanásio, produzido posteriormente, que o as-sunto "Trindade" apareceu de modo mais claro. Além disso, é importante notar que o credo niceno não diz nada quanto ao Espírito Santo ser ou; não uma pessoa. A literatura antitrinitária procura confundir o leitor apresentando como credo niceno o que na verdade é o credo niceno-constantinopolitano de 381, procla-mado depois da morte de Constanti-no.19

A idéia do credo niceno, como foi dito, parecia ser a de formular um texto enxuto, sem muitas explicações e que agradasse ao máximo a todos os partidos. Seu conteúdo, no entanto, terminou incomodando os arianos por apresentar Cristo como consubs¬tancial ao Pai.

Portanto, vê-se como infundada a declaração de que Constantino se¬ria o pai da doutrina trinitariana usa¬da para atrair o politeísmo para a Igreja. Pelo contrário, Ario e Eusébio é que traziam uma doutrina politeís¬ta, pois apresentavam a Cristo como um "segundo" deus, menor que o Pai, mas igualmente divino e que se assemelhava muito ao chamado "Demiurgo", ou seja, um deus menor I
que, segundo o gnosticismo do Egi¬to, fora usado pelo deus maior para trazer o mundo à existência. Isto, sim, pode ser classificado de politeís¬mo. Pena que muitos insistam emnão entender!

Referências:
I. Roberts, A., e Donaldson, J., [eds] Ant~icene FalheTS, New York: Charles Scribner's Sons, 1913. Esta coleçao antiga traz uma traduçao em inglês dos textos patristicos. Lubac, H., Damielou, eL all~ Sour¬ces ChréIiennes, Paris, Ies édition du Cert, 194155., esta é a mais im¬portante coleçao de textos dos Pais da Igreja. Traz o texto original em grego, latim, copta &. ladeado de uma tradtJÇao para o fran¬cês. Além disso, apresenta as variantes que possam existir entre um e outro manuscrito. Salvo indicações em contrário, vamos seguir
        aqui a numeraçao da Ante-Nicene Fothers.
2. Tertuliano, Sobre a Modéstia. XXI.
3. Clemente, I Eplstola aos Corlntios, XLVI.
4. lnáeio, EpIstoIa aos Tro/ionos, VII (recensao cultl).
5.lbidem (rec~o longa).
6. Justino, I Apologia, VI.
7. Atenágoras, Súplica pelos Cristõos, x.
8.lbidem, XI.
9.lbidem, XXIII.
10. Teófilo, A Autó/íco, '/N.
11. lreneu, Contra Heresias. v. 2.
12. a. lreneu, Contra Heresias. IV, xx. 2.
13. Hipól~o: Fragmentos de Comentórios, 10 (ANF, vai. 5, pág. 174). 14. Hipól~, Contra Noeto, 14.
15. Andrews, J. N. Mvent Review. 6 de março de 1855 [vaI. 6, n' 24,
        pág. 185].
        16. ~ a.rioso notar que em sua obra HisIoty 01 Sobboth publicada poste¬
        rionnente em 1887, Andrews om~ a "trindade" da rlSla de "heresias
        romanas" que aáentraram a Igreja no IV século. a. págs. 193-204.
17. WMe, E. G., O Grande conflfto, Tatul, SP: Casa Publicaóora Brasilei¬
        ra, 1996, pág. 580.
18. Uma reproduçao da caltl óe Constantino pode ser encontrada em
        Eusébio de Cesaréia. IfHfo de Constonâno. 11. 64-n.
19. Um exemplo está no livro de Ricardo Nícotra, f1J e o Pai somos um,
        5ao Paulo, 2004, pág. 88.

Rodrigo P. Silva, Th.D., é professor de Novo Testamento no Unasp, campus Engenheiro



Revista Adventista, julho 2005

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