Espírito que morre
Descobertas científicas sugerem que o espírito
humano não é uma
entidade imortal
por Vanderlei Dorneles
Edítor
A década de 90
foi chamada no meio científico de “A década do cérebro”. Os cientistas estão
cada vez mais encantados com esse extraordinário órgão, e têm feito inúmeras
descobertas sobre suas propriedades e funções. Esses conhecimentos têm
colocado em cheque a doutrina da imortalidade da alma, como crida pela maioria
dos cristãos.
As pesquisas mostram que características espirituais como personalidade,
sentimentos, emoções e caráter podem ser alteradas por lesões no tecido
cerebral. Isso implica que o ser humano não possui uma entidade espiritual
separada das funções do cérebro.
Por isso, alguns alegam que a doutrina cristã está em crise. Mas será
mesmo que a Bíblia está em contradição com a ciência nesse ponto?
A crise da imortalidade — Desde Platão, filósofo grego, os ocidentais admitem a idéia da
imortalidade da alma e, alguns, a suposição da reencarnação. Difundida com a
cultura helênica, durante o Império Romano, essa idéia ficou tão fortalecida
que os cristãos acabaram acreditando nela. Ao longo da história do
cristianismo, poucos grupos têm defendido a idéia contrária. Os adventistas do
sétimo dia são um deles.
Nos últimos anos, alguns cientistas têm se interessado pelo assunto e
afirmado que a crença na imortalidade da alma tem os dias contados. É o caso
do helenista Walter Burkert, autor do livro Antigos Cultos de Mistério,
e maior estudioso da antiga religião grega.
Para Burkert, há hoje uma crise religiosa que, porém, não se volta contra a
religiosidade em si, mas contra igrejas e doutrinas que estão ultrapassadas.
“Aproxima-se o fim da filosofia platônica, que estabelece o dualismo
corpo/alma, central à teologia cristã”, declarou em entrevista a um jornal
brasileiro.
A crença na imortalidade da alma, mantida por católicos e bom número de
protestantes, baseia-se nesse postulado grego de que o espírito não é apenas
superior ao corpo, mas pode viver sem ele. Platão supunha que “a alma, como
portadora do espírito, seria necessariamente independente do corpo”.
Walter Burkert argumenta que a crise da imortalidade deve-se em parte às
descobertas científicas dos processos químicos e elétricos do cérebro, que
têm demonstrado que características do espírito humano como
consciência,
emoções e caráter têm endereços nos hemisférios cerebrais.
Natureza
biológica do espírito — Antônio Damásio, diretor do departamento de Neurologia da Universidade de
Yowa e autor do livro O Erro de
Descartes, comprovou
cientificamente que lesões cerebrais podem afetar funções espirituais do
cérebro, inclusive o juízo moral. Nesse livro, ele relata a história de Eliot,
um paciente que extraiu um tumor do cérebro e voltou às suas atividades
normais. Mas comportava-se de forma anormal. Em testes complexos, Eliot teve
desempenho de elevado coeficiente intelectual, mas se mostrava incapaz de
decisões sensatas. A maior contribuição de seu caso foi quando ele foi colocado
diante de várias cenas dramáticas (acidentes, pessoas morrendo, prédios
queimando). Ele não reagiu. O que levou o pesquisador a concluir que sua
faculdade de compaixão e de raciocínio tinha sido atingida pela lesão. A
personalidade e o caráter de Eliot foram
alterados com a perda de massa nervosa.
Outro caso analisado por Damásio é o de Phineas Gage. Em 1848, enquanto trabalhava na construção de uma
ferrovia, em Vermont, EUA, esse operário de 25 anos, sobreviveu após ter sido
alvejado por uma barra de ferro lançada por uma explosão. O objeto atravessou
a bochecha de Gage e saiu pelo topo da cabeça. O moço não apresentou qualquer
seqüela física nem perdeu a memória. Sua inteligência não foi alterada. Mas
deixou de ser ponderado e passou a agir sem pensar nas conseqüências. Segundo
Damásio, o equilíbrio entre as faculdades intelectuais e as propensões animais
fora destruído. “Gage mostrava-se caprichoso, irreverente e obsceno; impaciente
às restrições quando estas opunham-se aos seus desejos” (O Erro de descartes, pág. 28).
O fato desafiou a ciência durante um século. Agora, sabe-se que o cérebro
tem funções espirituais, que definem a personalidade e o caráter. A
personalidade tem um endereço em nossa cabeça. Fica atrás da testa, no lobo
frontal do cérebro. Foi justamente essa região do cérebro de Gage que a barra
de ferro danificou.
O caso de Gage e Eliot, levou Damásio a concluir que “o juízo ético tão
próximo da alma humana depende significativamente de uma região específica do
cérebro”.
Damásio e Burkert afirmam, portanto, que o espírito (ou alma) é uma função
do cérebro vivo.
Outro pesquisador interessado nas questões do espírito é John Roger Searle, professor na
Universidade de Berkeley, na Califórnia. Ele propõe o abandono das categorias
tradicionais da alma. No livro A
Redescoberta da Mente, ele
concluiu que “a consciência é um fenômeno biológico natural”. Isso significa
esquecer a doutrina da imortalidade da alma, que supõe urna dimensão espiritual
independente do corpo. Searle diz que a consciência definida como um fenômeno
biológico é a melhor maneira de se estudar o espírito. “Tenho dois slogans: o cérebro é a causa do espírito, e o espírito é uma
característica do cérebro”, resume.
Conceito bíblico — As descobertas científicas das características e funções do cérebro não
trazem qualquer dificuldade à maneira
com que a Bíblia define o ser humano. Na cultura bíblica, alma e espírito são
interdependentes do corpo.
Segundo o
relato da Criação, feito em Gênesis, o ser humano é indivisível, completo e
total. Uma unidade. E diferente de cada um dos elementos que a compõem. “E
então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o
fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gên. 2:7). Os elementos
da terra formam parte do homem. Mas a terra já não é terra; é um corpo vivo. O mesmo ocorre com o
fôlego. Já não é mais simples
vento.
O cérebro tem funções
espirituais, que definem a personalidade e o caráter. Essa descoberta não traz qualquer
dificuldade à definição bíblica
do ser humano
Segundo o Gênesis, a “alma vivente” é resultado da junção de dois elementos: matéria e fôlego de vida. O homem,
portanto, foi feito uma alma vivente, e
não com uma alma vivente.
No Antigo Testamento, a palavra “alma” tem vários significados: vida (2o.
Reis 17:21), coração (Gên. 34:3), ser vivente (Gên. 12:5), pessoa (Lev. 22:6),
entre outros. Confirmando que se refere à pessoa completa, a Bíblia afirma que
a alma pode morrer (Judas 16:30), ser assassinada (Núm. 31:19) ou devorada
(Eze. 22:25).
Os israelitas, portanto, consideravam alma
uma designação apropriada para a pessoa ou o individuo. Eles também estavam
certos de que o espírito não é urna entidade independente do corpo. Em
Eclesiastes 12:7, é dito: “E o pó volte à terra.., e o espírito volte a Deus
que o deu.” Deus assoprou no homem só o fôlego, portanto o que sai é só fôlego
também.
A palavra traduzida por “espírito” nesse texto, é o termo hebraico “ruach”.
No Antigo Testamento, é traduzido por “fôlego” 33 vezes (como em
Eze. 37:5), por “vento” 117 vezes (Gên. 8:1) e por “espírito” 76 vezes. Mas
mesmo quando é traduzido por “espírito” não indica uma entidade espiritual
independente. Nessas traduções, ruach tem significados como espírito de coragem
(como em Jos. 2:11), temperamento ou ira (Juí. 8:3) e disposição (Isa. 54:6).
Ruach também é traduzido por “mente” 9 vezes (como em Eze.11:5), “vontade” (2o.
Cron. 19:31) “caráter” 16 vezes ( Eze.
11:19). No Novo Testamento, a palavra “espírito”
é usada para traduzir o termo grego pneuma. É o equivalente a ruach, do hebraico. Refere-se ao princípio da inteligência e do pensamento
com que o homem é dotado, e pelo qual Deus se comunica com o homem. A palavra alma é usada para traduzir psique, do grego, e indica os impulsos, as
emoções, humor e desejos.
Desta forma, ao usar “espírito” e “alma” para falar da natureza humana, os
escritores bíblicos não estavam se referindo a uma entidade espiritual
independente do corpo físico, mas a características psíquicas e espirituais do
ser criado à imagem de Deus. Essas
características podem ser alteradas a partir de lesões na estrutura do
cérebro, como demonstrado nos estudos científicos.
As
descobertas científicas sobre as propriedades do cérebro fortalecem o conceito
bíblico da natureza do ser humano como ser vivo completo, integrado e
destituído de qualquer componente incondicionalmente imortal.
A imortalidade só se tornará uma realidade após a ressurreição, quando
Jesus retornar (ver 1a. Tess. 4:16 e 17). “E Deus limpará de seus
olhos toda lágrima, e não haverá mais morte” (Apoc. 21:4).
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