Movimento de renovação do culto requer atenta consideração
À medida que nos aproximamos do terceiro milênio, o
ateísmo parece sucumbir, enquanto a religião reconquista progressivamente o Interesse
das pessoas. Uma pesquisa recente constatou que 99% dos brasileiros acreditam
em Deus. No ranquing do crescimento religioso destacam-se as igrejas ou
cultos pentecostais, ao lado de religiões orientais e místicas. Em nosso país a
renovação carismática católica saltou de dois milhões para oito milhões de
fiéis em nove anos. Os pentecostais eram 51% dos evangélicos brasileiros, em
1980; em 1994 tornaram-se 75%. De 1980 a 1991, os protestantes históricos
cresceram 9% contra 117% do crescimento pentecostal.
Esses números servem de referencial para as feições da
nova religiosidade. A fé voltou a se expressar de forma espontânea. A liturgia
dos cultos “renovados” se manifesta de forma quase infantil e livre da rigidez
das normas e da ética. Uma vez “tocado”, o adorador se expressa como quer: ri, chora, dança, bate palmas , rola pelo
chão, entra em transe.
A
religiosidade atual é descomprometida. Nela, Deus emerge como ser imanente;
portanto, acessível e tolerante. A Escritura tende a perder sua autoridade
normativa, diante da proposta de preservação da cultura e da individualidade do
adorador.
Paixões
reprimidas — Para explicar o que
está ocorrendo nas igrejas cristãs, J. Comblin, no livro O Espírito Santo e a libertação (Editora Vozes), estabelece um
contraste entre o judaismo, que enfatizava a lei e a disciplina num esforço de
reprimir a natureza humana; e a religiosidade pagã, que encoraja a
permissividade e apresenta os próprios deuses como expressão dos desejos e das
paixões humanas. O cristianismo apostólico rejeitou os dois modelos,
estabelecendo o amor e a liberdade em Cristo como fatores de equilíbrio entre
os dois extremos. O catolicismo, em matéria de liturgia, reprimiu o lado pagão
e incorporou o modelo judaico. Na tentativa de manter sob controle a
libertinagem, cerrou a liberdade e eliminou toda e qualquer manifestação
emotiva, numa missa em que o adorador era um espectador inerte. O racionalismo,
da Era Moderna, endossou a ordem e a ética como comportamento adequado ao ser
humano racionalizado. Assim, também reprimiu as emoções e o lado selvagem do
ser humano.
Na pós-modernidade, com a ascensão do misticismo,
assiste-se a uma reação do pólo pagão. O ser humano parece querer libertar-se
do conceito de um Deus santo, das normas da igreja e da imposição da ética,
para voltar a ser ele mesmo. Assim desimpedido, o adorador assume sua original
e primitiva natureza — pagã. O próprio racionalismo preparou caminho para a
ascensão do paganismo ao minar a autoridade da Bíblia com a afirmação da
inexistência de Deus.
O francês Claude
Duchesneau, em seu livro A Celebração na
Vida Cristã (Edições
Paulinas). afirma que o Ocidente não é mais uma cristandade e os cristãos
voltaram a ser minoria num mundo, outra vez, pagão.
A ascensão do paganismo vem na onda Nova Era, que traz a
religiosidade oriental para o Ocidente “pós-cristão”. Esse paganismo moderno
encoraja o panteismo e a autonomia do indivíduo, além de valorizar a cultura
primitiva como meio adequado de expressão dos sentimentos religiosos.
“A religião está
se movendo do extremo racional para o extremo das emoções. Esse movimento
atingirá todas as igrejas.”
Reação
— Ao perceber
respingos desse fenômeno na igreja, nossa primeira reação é destacar seus
sintomas e procurar tratá-los. Os sintomas da “renovação religiosa” são as
manifestações exteriores, a saber, a música envolvente, a expressão corporal, a
excessiva emotividade e o êxtase. As raízes do fenômeno
carismático-pentecostal, no entanto, estão além de suas manifestações
exteriores.
Qual é, então, o fundamento desse culto? Sem dúvida, sua
teologia da Revelação e seu conceito de Deus.
Embora afirmem que Deus é um ser pessoal e que o Espírito
Santo não é uma energia, os pentecostais praticam uma liturgia festiva, matéria
importada dos cultos afro e indígenas, que mantêm um conceito de Deus como força
da Natureza. A relação entre pentecostalismo e cultos africanos e primitivos é
assunto discutido pelo antropólogo francês Roger Bastide, na obra
As Reigiões Africanas no
Brasil (Editora Pioneira) No
volume 2, à página 510, ele diz: O desenvolvimento do pentecostalismo no
Brasil, fundado na pregação do Espírito Santo, procurando graças exteriores e
extraordinárias, e institucionalizando o transe místico, corresponde melhor a
um traço cultural africano.” Os pentecostais
têm no êxtase o objetivo da liturgia, como previsto na Teologia do Encontro.
Esse “encontro”, segundo acreditam, ocorre pelo arrebatamento em espírito”,
falar em línguas, ter visões, etc.
No início do século, Martin Buber, pensador alemão de
origem judaica, em seu livro Eu e Tu (Editora Moraes, edição em português),
já indicava que o ser humano está interessado em experimentar Deus e não em
saber algo acerca dEle. Ora, a uma força se experimenta, a uma pessoa se
conhece. Leonardo Boff, católico, falando sobre o lugar da emoção no culto, diz
que acreditar não é pensar em Deus, é sentir Deus”.
Resultante da Teologia do Encontro, a outra base de apoio
do pentecostalismo é seu conceito subjetivista da Revelação, que vê as
Escrituras como uma coletânea de “experiências com Deus”, capazes de levar os
leitores a experimentarem Deus
também. O objetivo da Revelação, nesse caso, não é ensinar doutrinas ou
conceitos de verdade, mas apenas proporcionar elementos e criar condições para
o “encontro”. Com efeito, a pregação e a formulação teológica pentecostais são vazias de conteúdo e ricas em apelos
emocionais.
Natural x espiritual — Há dois tipos de culto: o culto
da religião natural e o culto espiritual. O culto natural é uma iniciativa do
ser humano que busca erguer-se a Deus, prestar-Lhe homenagem a fim de granjear
Seu favor, em face de suas necessidades. Esse culto nasce da propensão humana
de buscar apoiar-se no sobrenatural. Nessa tentativa, o ser humano oferece o
que, a seu ver, tem de melhor. Como não se baseia numa Revelação objetiva, não
tem uma consciência do pecado nem do que Deus aceita ou deseja. É o autêntico
culto pagão, já visto na oferta de Caim. Pode incorporar os dois extremos
litúrgicos: judaísmo e paganismo. Baseia-se na justificação pelas obras.
Já o culto espiritual celebra a ação de Deus. Nasce da
consciência da intervenção divina na História e na ação salvadora de Cristo.
Começa, portanto, com Deus. Não é o ser humano tentando subir a Deus, mas
resulta do fato de Deus ter descido até nós. Como é resultado da revelação de
Deus, surge com a identificação com a Palavra dessa revelação. Como homenageia
uni Deus que Se fez conhecido, a vontade desse Deus e Suas exigências são o seu
padrão. Originalmente, a celebração que Deus ensinou a Israel, em substituição
aos costumes egípcios, destacava, por meio das cerimônias, o Êxodo e a Aliança,
a ação divina.
Devido à ênfase no transe místico e ‘a interpretação da
Bíblia como mera coletânea
de
experiências, a renovação carismáticapentecostal tende a reduzir o culto a uma
mera manifestação de sentimento religioso natural.
Em Romanos 12:1, Paulo apela aos crentes para que
apresentem a Deus um culto “espiritual”. (O adjetivo logíkos, traduzido por “racional” ou “espiritual’, só aparece no N
T uma vez além desta, em 1a. Ped. 2:2, onde é traduzido por
“espiritual”) Nesse culto, o “corpo” (expressão da natureza humana) tem um
lugar, onde deve se manifestar como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”.
Essa recomendação, aliada ao conselho de não se “conformar” com o mundo,
distingue o culto cristão não pela sua forma, mas pela condição do adorador. O
verdadeiro culto não consiste em apresentações feitas segundo os costumes e
gostos do adorador, mas numa vida santificada pela Palavra. Este é o ponto mais
importante. O culto é a própria vida, na medida em que a fé
inove
o adorador a oferecer-se a Deus corno “sacrifício vivo”. As raízes desse culto,
portanto. são a consciência da santidade e da graça de Deus, manifestadas em
Cristo, em contraste com a pecaminosidade humana, e o reconhecimento da autoridade
da Escritura. Esse culto é, portanto, urna resposta à ação salvadora de Deus,
por parte de pessoas transformadas pela Palavra.
Se
essas raízes forem o objeto da pregação, o culto e a vida serão influenciados
por elas. Onde quer que elas forem negligenciadas, aí haverá distorções. Na
igreja primitiva, a proclamação da graça e manifestação de Deus em Cristo criou
ambiente para um culto singelo, mas distinto das celebrações pagãs.
“O verdadeiro culto não consiste em apresentações feitas
segundo os costumes e gostos do adorador, mas numa vida santificada pela
Palavra.”
É inútil
dizer aos adoradores como devem se comportar se não estão cientes da santidade
e da presença de Deus. Como é inútil dizer que manifestem entusiasmo, se não
receberam o impacto da proclamação dos atos de Deu.s. Se a pregação é humanista, se não fere a Cmz de modo
que faça jorrar sangue, se não leva
os ouvintes a uma identificação com a Palavra revelada, a reação não será de
entusiasmo. Na falta desses elementos, caso se busque manifestação de
entusiasmo, por meio de exercícios de motivação artificial ou por musica ritmada
ou ainda por apelos sensacionais, as emoções se levantarão não consagradas, não
orientadas
Focalizado na Palavra — Tradicionalmente, a Igreja Adventista teve na pregação da Palavra e em
sua consciência da verdade o estímulo de sua liturgia. A consciência de que
somos um movimento profético alimenta a disposição de obedecer e move o culto a
Deus.
Nesse contexto é válida uma ponderação sobre qual tem
sido o conteúdo da pregação. Os estudos bíblicos se concentram nos temas que
envolvem o plano da salvação, o santuário, o reino de Deus, os atributos
divinos, a Lei e a cadeia profética. Já a pregação, em igrejas consolidadas, se
constitui de reflexões em torno do perdão, o conforto do Espírito, a comunhão
com Cristo, o amor de Deus, a conduta cristã e o dever do testemunho.
O conteúdo dos estudos leva o interessado ao conhecimento
da vontade de Deus e do plano da salvação. Abre as perspectivas futuras da ação
de Deus por ocasião da volta de Cristo e do estabelecimento de Seu reino. Ao
conceituar a vida espiritual sob a perspectiva do reino de Cristo, cria uma
consciência de movimento profético, partilhado por pessoas
que não pertencem a este mundo e que servem a um Deus que salva do pecado e
que, portanto, o reprova e destruirá.
Por
considerar, consciente ou inconscientemente, que a pessoa convertida já não
precisa mais do ensino doutrinário, em geral os pregadores seguem outra linha
de abordagem. Os temas mais comuns da pregação hoje não mantêm o horizonte
profético do reino de Deus, ao contrário disso tratam com as necessidades
presentes do membro da igreja. Enfatizam a bondade de Deus e Sua graça, a fim
de fortalecer a disposição de obedecer. Por mais bíblica que seja essa
pregação, se está focalizada na vida e nas necessidades do crente na Terra, não
o manterá firme em sua caminhada para o Céu. O horizonte celestial, refletido
nas profecias e nas doutrinas, precisa ser mantido diante do povo.
A religião está se movendo do extremo racional para o
extremo das emoções, o que caracteriza o retomo do modo pagão de cultuar. Esse
movimento atingirá todas as igrejas.
É uma marca do próximo século. O
extremo pagão só poderá ser evitado, onde se queira substituir a apatia pelo
dinamismo, mediante a constante proclamação da completa Palavra de Deus. Essa
proclamação segura o pêndulo, evitando o extremo racional e o extremo emotivo.
Vanderlei Dorneles
é editor de Noticias da
FIM
Revista Adventista
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