Cultura popular influência o culto cristão
e ameaça a essência da adoração
O ato de adorar, a
experiência mais significativa do ser humano, sempre mereceu destaque no
cristianismo. Algumas igrejas se preocupam mais com o tema do que outras, mas
todas o consideram uma prioridade. Os estilos de culto variam, mas os encontros
com o sagrado não podem faltar.
A busca
coletiva de Deus é o exercício
semanal ou mesmo diário mais fiel ao longo de dois milênios de história.
Durante séculos, o culto cristão permaneceu mais ou menos estável. Na maior
parte das igrejas, é marcado por uma apresentação solene dirigida pelo líder
espiritual, o canto tradicional e a participação discreta da congregação.
Embora aqui e ali grupos reavivamentistas agitassem as massas, as coisas quase
sempre permaneceram sob o controle da hierarquia, dentro das estruturas
eclesiásticas.
Agora, porém,
vastos setores do cristianismo enfrentam uma profunda transformação no seu
estilo de adorar. Não dá para dizer que o legado cristão esteja em jogo, mas é
evidente que uma mudança está em processo. Em alguns casos, onde havia
fossilização e frieza, a mudança pode ser para melhor, pois resgata o fervor e
oferece a possibilidade progressiva de maturidade e equilíbrio; em outros
casos, onde estão ocorrendo grandes excessos, a mudança é para pior, pois pode
oferecer um contato ilusório com o sagrado e levar a pessoa a se abrir a influências
maléficas.
O novo estilo
de culto é visto especialmente em igrejas de tradição pentecostal e
carismática, consideradas hoje a terceira força do cristianismo no mundo e o
segmento evangélico mais forte no Brasil. Nessas igrejas, a adoração inclui
participação efusiva ou mesmo frenética da congregação, com música rítmica e às
vezes o falar em línguas (fenômeno conhecido, tecnicamente, como
“glossolalia”). Os crentes, acreditando estar sendo movidos pelo Espírito
Santo, têm um grande envolvimento emocional.
Em algumas
igrejas evangélicas, influenciadas pelo mundo pentecostal/carismático, já são
aceitos e executados vários ritmos e estilos populares, como rock, samba e sertanejo. É claro que a
batida secular sempre vem mes1 dada com uma..letra contendo motivos
religiosos. Porém, a proximidade com a música popular é muito grande. Isso era
impensável há alguns anos.
Donald Bloesch, um respeitado
teólogo na arena evangélica norte-americana, recentemente reclamou da crescente
vacuidade na adoração protestante. “A atmosfera em muitos de nossos cultos é
mais clubistica e convivencial do que adoradora e expectante , constata.
A adoração contemporânea na avaliação do teólogo, busca mais satisfazer os
desejos humanos do que glorificar a Deus. “Essa motivação em si não é errada,
mas se torna questionável quando vira a prioridade.”
A
ADORAÇAO BÍBLICA
Nas línguas originais da Bíblia (hebraico e grego), as
palavras mais usadas para descrever o ato de adorar significam “inclinar-se”,
“prostrar-se”, “ajoelhar-se”, “beijar”, “homenagear”, “servir”. O sentido básico
é visto neste convite do Salmo 95: “Ó, vinde,
adoremos e prostremo-nos; ajoelhemos diante do Senhor que nos criou.”
Na perspectiva bíblica, portanto, a adoração é um ato de celebração de Deus. Adorar é reconhecer o valor supremo de
Deus; é expressar um amor sem
medida pelo Criador; é dar glória ao único ser que a merece; é aplaudir o Rei do Universo
com a mente, o coração e o corpo; é afirmar que Deus é o máximo. Adoramos por Deus ser quem Ele é e por fazer o que faz. Adoramos porque
somos atraidos pela santidade e o amor de Deus.
A adoração deve
ser espiritual e
verdadeira. Isso quer dizer que ela precisa (1) ser centralizada em Deus, (2) ser mediada por Cristo, (3) ser orientada pela Palavra de Deus, (4)
envolver todo o ser, (5) ser
voltada para o passado, o presente e o
futuro, (6) expressar exteriormente o que está no interior.
Na adoração, o crente tem uma nova visão de Deus e de si mesmo. Ele reconhece sua condição de pecado, busca a graça, e então se sente perdoado, purificado e transformado. Aceita a missão de
Deus para a sua vida e leva a adoração para o espaço secular, vivenciando o
sagrado no dia-a-dia.
Nas comunidades
católicas que adotaram a renovação carismática, a missa também tornou-se mais
celebrativa e agitada. Instrumentos de percussão geralmente marcam o ritmo. O
padre Marcelo Rossi, com as suas missas gigantescas e aparições freqúentes na
TV é apenas a ponta mais visivel do iceberg.
As razões para
essa guinada impressionante são várias. Primeiro as igrejas tradicionais
deixaram um vácuo na adoração, ao promover um culto formal e árido. Muitas
inovações ocorrem exatamente nos aspectos onde a igreja falha. Os crentes,
hoje, querem sentir um Deus mais próximo e amigo. A transcendência deu espaço
para a imanência. Na busca de sentido e identidade espiritual, apela-se para
aquilo que afete o psiquismo, provoque êxtase e dê a sensação de contato com
o sobrenatural.
Em segundo
lugar, a filosofia pós-moderna descartou os absolutos e exaltou os relativos.
Nesse contexto, as verdades objetivas do cristianismo, expressas nos grandes
hinos do passado, perderam força. Além disso, as barreiras entre o sagrado e o
secular caíram ou se estreitaram. O que conta agora é o aqui, o já, o eu, o
que penso, quero e sinto. Muitas pessoas sentem-se na liberdade de escolher
apenas os itens doutrinários que interessam à sua experiência.
Vanderlei
Dorneles, ex-editor da revista Sinais e
atualmente professor de Jornalismo no Unasp, no interior de São Paulo, sugere
em seu livro Transe Místico (Centro
Universitário Adventista, 2002) uma ligação entre o pós-modernismo, o
pentecostalismo e o culto primitivo. Segundo ele, o pôs-modernismo preparou o
caminho para a expansão do pentecostalismo. Por cultivar o subjetivismo e na
prática minar o conceito de verdade absoluta, o pentecostalismo ocuparia na
religião o lugar que o pôs-modernismo ocupa na filosofia. Paradoxalmente,
porém, o pentecostalismo, com sua ênfase em experiências místicas, parecidas
com as experiências religiosas do antigo mundo greco-romano e da cultura
africana, seria um fenômeno de natureza pré-moderna.
“A liturgia
pentecostal e carismática, voltada para as experiências de transe, reflete as
liturgias dos cultos antigos, em que a música e o apelo emocional eram as
técnicas para a obtenção do transe”, afirma Dorneles. Por isso, diz ele, “o
pentecostalismo representa melhor um retorno ao primitivo do que uma renovação
religiosa”. A religião primitiva, pautada mais pelos ritos e símbolos do que
pelos mitos e discursos (idéias), dava grande ênfase ao corpo, ao ritmo e à
dança.
Finalmente, a
adoração vem sofrendo uma mudança devido a uma escolha consciente e
deliberada de certas comunidades que desejam atrair para os templos as pessoas
com mentalidade secular. Há igrejas, especialmente nos Estados Unidos, que
oferecem diferentes tipos de culto, alguns embalados pela música rock ou pop, na tentativa de agradar o gosto das novas gerações. Na visão
dessas igrejas, os resultados obtidos compensam a estratégia de marketing questionável.
Guerra musical — A música é um dos elementos centrais do culto
tradicional e especialmente desse novo estilo de adoração. Nos Estados Unidos,
as revistas evangélicas têm até falado em uma “guerra do culto” nas igrejas
protestantes, referindo-se aos embates para definir qual é o melhor estilo de
música para o culto cristão. Contudo, o pesquisador George Barna, apoiado em
pesquisas do seu instituto, relativiza essas disputas. Segundo ele, 24% dos
pastores titulares reconhecem que suas igrejas enfrentam tensões relacionadas
ao estilo musical, mas somente 5% deles alegam que as tensões são fortes. No
total, apenas cerca de 7% das congregações protestantes no pais têm conflitos
“sérios” ou “mais ou menos sérios” na área de música.
As pesquisas do
grupo Barna também revelaram que somente 17% dos entrevistados definitivamente
ou provavelmente trocariam de igreja por causa de uma alteração no estilo musical,
enquanto 76% não mudariam seus hábitos por causa de um novo estilo musical.
Caso a pessoa fosse tentada a buscar uma igreja devido ao fator música, as
opções seriam muitas. Cerca de 73% das igrejas protestantes oferecem múltiplos
cultos, com estilos musicais variados. O número de igrejas que oferecem música
tradicional, utilizando hinos, coral, órgão ou canto congregacional, chega a
46%. Quase a mesma porcentagem (43%) usa música “mista”, uma combinação de dois
ou mais estilos no mesmo culto. Outros estilos usados são o rock e a música cristã contemporânea
(usados em 24% das igrejas), louvor e adoração (em 8%) e gospel (em 7%).
Barna falou
sobre o assunto no final do ano passado num simpósio promovido na Universidade
Baylor, em Waco, Texas. Citando conclusões de três pesquisas sobre o tema nos
Estados Unidos, ele sugeriu que o problema real não é a escolha do estilo de
música pelas igrejas para facilitar a adoração, mas o interesse e a
participação consciente do público no ato de adorar. A maioria das igrejas tem
pouca gente que realmente se engaja na adoração. “O desafio maior”, diz Barna,
‘é ajudar as pessoas a entender a adoração e a ter uma paixão intensa para
ligar-se a Deus.”
Na opinião do
pesquisador, a música é importante no processo de adoração, mas tem recebido
mais atenção do que merece. “A música é apenas uma ferramenta projetada para
capacitar as pessoas a se expressar diante de Deus, embora às vezes gastemos
mais tempo debatendo sobre a ferramenta do que sobre o produto e o propósito
da ferramenta.”
TEOLOGIA DA
MÚSICA
Samuelle
Bacchiocchi, autor de The Chistian and Rock Music ( O Cristão e a Música
Rock), sem tradução no Brasil, diz que “a controvérsia sobre o uso da música
rock na Igreja é fundamentalmente teológica, porque a música é como um prisma
através do qual brilham as verdades eternas de Deus.” As músicas cantadas e os
instrumentos tocados durante o culto expressam o que uma Igreja acredita sobre
Deus e Sua revelação para nós.
Na opinião do
teólogo, o rock religioso representa um “empobrecimento religioso”, pois em
geral suas letras se baseiam em uma teologia inadequada, superficial ou mesmo
herética, voltada par a gratificação pessoal e centrada no eu. Há um apelo
fácil ao emocional e evita-se cantar sobre a glória, a beleza e santidade de
Deus.
Defendendo uma separação entre o “sagrado” e o
“profano”, Bacchiocchi alerta que os líderes da adoração que insistem em usar
um ritmo pesado na Igreja deveriam notar que nenhum instrumento de percussão
foi permitido no Templo de Jerusalém, instrumentos associados a diversões
seculares, como tamborins, cornetas e citaras, também foram proibidos, o que
indicaria que a música na Igreja não deve estar baseada apenas no gosto pessoal
ou nas preferências culturais.
Para o teólogo,
a adoração na igreja deveria refletir a adoração celestial, vislumbrada
especialmente no livro do Apocalipse. “A música triunfante de Apocalipse é
inspirada não pela pulsação hipnótica de instrumentos de percussão, mas pela revelação maravilhosa
dos feitos redentores de Deus por Seu povo”, comenta. “No Apocalipse é um conjunto
instrumental das harpas que acompanha o cântico dos coros, porque o som da
harpa combina-se bem com a voz humana, sem suplanta-la”.
A música na
igreja deve expressar a delicia e a alegria de estar na presença de Deus, mas
sem emocionalismo artificial e exagerado.
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Apesar de
possíveis distorções, muitas pessoas parecem estar satisfeitas com a sua
experiência de adoração. Segundo Barna, quatro em cinco norte-americanos (83%)
dizem que saem do culto sentindo-se aceitos ou completamente amados por Deus
“toda vez ou na maioria das vezes”; 69% normalmente saem inspirados;
62% sentem-se como se tivessem conectados com Deus ou
estado em Sua presença em muitos casos; 50% freqüentemente sentem-se
desafiados a mudar de vida; e apenas um pequeno número deixa os templos
sentindo-se culpados ou desapontados (10%), ou frustrados por não terem suas
necessidades atendidas (8%).
INDUSTRIA
DO LOUVOR
A chamada “música de louvor e adoração”, marcada pela
presença de violão e outros instrumentos, foi introduzida há quase 30 anos nos
Estados Unidos. Em 1974, o selo Maranata! Music iniciou a virada com o
lançamento de “The praise Álbum”, que trazia faixas melódica e
memoráveis como “Seek Ye First”, de Karen Lafferty.
Com a descoberta de que o louvor dá lucro,
vários outros selos foram criados,
Maranatha!, Integrity, Sparrow e
Vineyard são apenas quatro
companhias que formam hoje uma Industria multimilionária, oferecendo um amplo
leque de produtos, como CDs, vídeos, publicações e serviços de Internet .
A renovação da hinódia evangélica começou
na década de 1960, na Grã-Bretanha. Na época, um grupo liderado por Eric
Routley fez um estudo para descobrir o tipo de música que poderia cativar o
ouvido contemporâneo. Através de George
Shorney Jr. , da Hope Publishing Company , o trabalho de Routley e de outros se
espalhou pelos Estados Unidos , e de lá para o mundo.
Hoje, canções como “Lord, I Lift Your Name
on High”, “he Has Made Me Glad”, “As the Deer”, “Majesty”, “Awsome God”, “The
Power of Yous Love” e “Shout to the Lord”, com suas muitas traduções e
versões, convivem com os hinos clássicos
e, em algumas igrejas, os substituíram. É um tipo de música mais leve, que fala
diretamente a Deus ( e não sobre Ele), que tem sido aceito até mesmo por
crentes tradicionais. A introdução do rock nos templos foi uma radicalização
dessa tendência, a qual é rejeitada por muitos.
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Equilíbrio
— Muitas pessoas hoje tendem a ver a adoração como uma atividade que visa
trazer benefício para elas mesmas. Elas querem tocar, sentir receber. Contudo,
o objetivo principal da adoração é render honra e tributo ao Criador, sentindo
Sua presença e conectando-se à fonte da vida. Os benefícios pessoais vêm como
conseqüência. O foco do culto deve ser Deus, não o eu. No culto bíblico, somos
tocados, transformados e então oferecemos a vida a Deus (veja o quadro “A
adoração bíblica”).
Um dos problemas com esse novo estilo de adoração é que
ele geralmente enfatiza demais o corpo e a emoção, cm detrimento dos neurônios
e da razao. É claro que a emoção e o corpo são importantes na adoração. Porém,
nao se deve esquecer o lado racional. A religião cristã é uma religião da mente
e do corpo, da razão e da emoção, da revelação e da experiência. Devemos
expressar nosso amor a Deus com o intelecto, a emoção e o corpo.
O cristianismo
é um equilíbrio entre transcendência e imanência. Se de alguma forma o Antigo
Testamento, com a Torah (Lei), estabelece a santidade e a transcendência de
Deus, o Novo Testamento, com Jesus, ressalta o amor e a imanência de Deus. O
culto cristão, assim, deve unir elementos que mostrem o distanciamento e a
aproximação, a grandeza e o interesse de Deus.
O problema com
certos cultos modernos não está no fato de serem diferentes do tradicional. É
possível ser diferente e ainda promover a verdadeira adoração. Assim como os
quatro evangelhos apresentam ângulos diferentes da vida de Cristo, todos válidos,
os diversos estilos litúrgicos também podem contribuir para o enriquecimento
da experiência de Deus. O problema é quando excessos e elementos estranhos
subvertem o próprio conceito de adoração.
FONTE: Sinais dos Tempos
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