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quinta-feira, 11 de outubro de 2018

RELIGIÃO NA RÚSSIA




CONEXÃO  RUSSA


Estudiosos começam a descobrir as raízes e a desvendar os mistérios do movimento que tentou reformar a religião na Rússia.



Examine uma enciclopédia. Pergunte a um aluno de histó­ria. Converse com um pastor. Todos definirão “reforma” como o movimento religioso do sé­culo 16 que desafiou a Igreja Cató­lica Romana na Europa. Lutero, Calvino e Zwínglio são nomes que representam sua vanguarda. Mas, quase um século antes, a Rússia teve sua reforma, um evento que não recebeu a devida atenção no mundo ocidental. Ela também teve seus valentes que permaneceram firmes ao lado da verdade bíblica. Hereges foram também queimados, na tentativa de extinguir a luz da reforma religiosa. Esse importante movimento tinha o potencial de mudar não só a história da Rússia como também a situação religiosa no Ocidente. E o Ocidente mal sa­bia que ela poderia ter ocorrido.

Hereges ou heróis? A Reforma Russa começou com o Movimento de Nov­gorod-Moscou, uma corrente intelec­tual e religiosa que percorreu essas ci­dades. É difícil ser exato a respeito da data de sua origem. O historiador russo Servitskii afirma: “Tentamos descobrir.., de onde surgiu essa here­sia.., examinamos atentamente todas as fontes e concluímos que... não há início definido.” Outro historiador, A. I. Klibanov, escreve que esses “he­reges” surgiram mesmo “antes dos sé­culos 13 e 14”. Como sua teologia era radicada na Bíblia, o movimento não foi afetado pelo cristianismo bizanti­no. Considerando que não eram mui­tos os seus adeptos, sua atividade existiu em condição latente durante séculos, para simplesmente romper em chamas nos anos 1400.
A Rússia do século 15 passou pela transição de um país dividido para uma monarquia absolutista centralizada. Com o surgimento de novas classes sociais e novas manei­ras de pensar, esse processo trans­formou-se em solo fértil para a ex­pansão de um movimento aparente­mente protestante. A reforma tinha o apoio da família real, inclusive de Dimitrii, o primeiro czar a ser co­roado, e envolvia muitos membros da nobreza e clérigos, bem como milhares de pessoas comuns.

Sábado bíblico Ao contrário da Re­forma da Europa ocidental, cujo ter­reno fora preparado pelas idéias se­culares da Renascença, a Reforma Russa se baseava mais no es­tudo da Bíblia e na reflexão. Na Rússia, a Bíblia não ha­via sido escondida do povo como em países católicos. Pelos escritos de Ivan Chiornyi (?-1505) e dos ir­mãos Ivan (c. 1440-1504) e Feodor Kuritsyn (c. 1440-1504), principais teólogos da reforma, fica evidente que os princípios de fé, esti­lo de vida e os ensinos dos sabatistas dentro do movi­mento baseavam-se na Bí­blia. Desde o século 11, tre­chos da Bíblia já haviam sido traduzidos para o idio­ma do povo, e por volta de 1581 os russos tinham a Bí­blia inteira impressa.
Durante os anos de Filipp de Moscou (c. 1470), bispo da Igreja Ortodoxa Oriental na região, os sabatistas já possuiam um conjunto Sistemático de crenças e ensinos. O centro de desenvolvi­mento da sua teologia era Novgorod —   a cidade mais independente e livre da Rússia. Seu estilo republicano de governo solidificou vínculos com a Europa ocidental e com outras par­tes da Rússia. É possível também que os ensinos sabatistas tenham sido influenciados por uma heresia protestante que existiu anteriormen­te na Rússia, a Strigol’niki, que en­volvia pessoas leigas promovendo reformas religiosas. Mas a influência Strigol’niki sobre os sabatistas ficou limitada ao livre intercâmbio de idéias e compromisso com o estudo da Bíblia, pois aquela estava grandemente envolvida com reformas so­ciais, ao passo que esta última abrangia reforma teológica radical.
Um fator que incentivava o movi­mento sabatista era a influência ex­terna sobre várias cidades russas. A segunda parte do século 15 viu uma Rússia mais centralizada, envolven­do-se cada vez mais em atividades in­ternacionais. Conseqüentemente, as idéias ocidentais sobre arquitetura, profissões especializadas, leitura,
moda, liberdade de pensamento e re­ligião afetavam a Rússia. Além disso, a influência dos movimentos religio­sos hussjta e taborita na Boêmia en­corajava os desenvolvimentos saba­tistas. A íntima relação entre a Boê­mia e a Polônia, bem como os víncu­los educacionais e culturais dos estu­dantes poloneses com as universida­des checas, possibilitou aos estudan­tes poloneses levarem novas idéias re­ligiosas ao voltarem à sua pátria. Es­tas, por sua vez, exerceram influência sobre a Rússia. A certa altura, as idéias hussitas eram tão fortes na Po­lônia que um decreto foi publicado proibindo viagens à Boêmia e a leitu­ra de literatura boêmia.

Alcance —    Perto da metade do século 15, um grande grupo de clérigos ortodoxos russos em Novgorod apoiava e promovia o movimento da reforma. Entre eles, figuravam bispos preeminentes como Dionisii e Aleksci, mais tarde no­meados arcebispos de Novgorod. Por volta desse tempo, Ivan III, o primeiro czar russo, visitou Novgorod e ficou impressionado com as realizações inte­lectuais e o estilo de vida simples dos clérigos, em contraste com os clérigos  de outros lugares. Ele então convidou os dois bispos a irem a Moscou e os no­meou arcebispos das catedrais de Us­penskii e Arhangel’skii, no Kremlin, duas posições fundamentais de influên­cia religiosa e política no pais.
Por esse tempo, muitos dos cléri­gos de Moscou eram publicamente seguidores do movimento da refor­ma. Alguns comentaristas chegaram à conclusão de que o próprio metropo­litano de Moscou, Zosima, estava praticando crenças da reforma.
Provavelmente, o principal teólogo do movimento Novgorod-Moscou foi Feodor Kuritsyn, diplomata russo que viajava muito pela Europa e que viveu três anos na corte do rei transilvano Matthias I Corvinus (1443-1490). Ku­ritsyn ocupava uma posição importan­te no governo da Rússia —   hoje em dia equivalente à de Ministro de Relações Exteriores e Primeiro Assessor do Czar. Como lingüista que falava la­tim, italiano, tártaro, lituano e polonês ele desempenhou papel primordial na pacifica derrota do domínio tártaro-mongólico em 1481. Kuritsyn também estabeleceu relações com países oci­dentais. Sua permanência na corte do rei Matthias ocorreu logo depois de as facções hussita e taborita na Boêmia se unirem ao governo e ao povo para combater o ilegítimo poder da igreja. É possível que Kuritsyn, que aconselha­va o czar em questões de relações in­ternas e com o exterior, tenha também influenciado o czar em questões reli­giosas. Esta conclusão é aceita à medi­da que se leva em consideração que o Czar Ivan III defendia algumas crenças da reforma, como a mortalidade da alma. Alguns do familiares mais próxi­mos do czar eram reformadores. Helen (assassinada em 1505), por exemplo, esposa de Ivan, filho de Ivan III, seguia os ensinos dos sabatistas, e não só in­fluenciou o czar como também ensi­nou suas crenças ao filho Dimitrii. Ela era filha do príncipe moldávio Stephan (1435-1504), que recebeu refugiados protestantes da Boêmia nos anos 1480. Entre outros lideres e seguidores dos reformadores são contados os mais cultos de seu tempo na Rússia.
A reforma encontrou apoio tanto nas classes mais altas como nas mais baixas. Volotskii, o principal opo­nente da reforma naquela época, es­creveu com rancor que em todas as cidades o povo debatia a fé reforma­da em todos os lugares. Em Pskov, por exemplo, discutia-se dogmas e tradições da igreja quando se reu­niam no veche, lugar popular de reu­niões. Gennadii Gonozov, outro opo­nente importante desse movimento e fundador da Inquisição Russa, escre­veu ao bispo Prohor Sarskii que “a tentação” circulava “não só nas cida­des, mas também nas vilas”.
É óbvio, portanto, que a Reforma Russa afetou todas as classes sociais, incluindo o povo comum, os clérigos, funcionários do governo, nobres e até a família do czar. Mas que ensinava esse movimento?
Ensinos Embora existissem pontos de vista divergentes entre os reformado­res, pouca justificativa havia para os clérigos ortodoxos russos estigmati­zarem os reformadores como “judai­zantes”. O sólido fundamento bíblico central da reforma se torna pronta­mente evidente na literatura religiosa daquele tempo:
1. A Escritura Sagrada é a mais ele­vada autoridade para o crente e se en­contra acima das tradições da igreja. A observância do sábado, da Ceia do Senhor e outras crenças semelhantes são diretamente inferidas desta cren­ça suprema.
2. Vida monástica, imagens, relí­quias sagradas e outras tradições não encontradas na Bíblia são in­venções sacerdotais e não devem ser veneradas.
3. A Bíblia é tanto um guia históri­co como profético que liga o passado, o presente e o futuro.
4.  O cristão deve orar a Deus sem qualquer mediador humano, como padres ou santos. A Escritura pode ser compreendida e explicada sem o auxilio dos clérigos.
5.  Os crentes devem observar toda a lei de Deus, o Decálogo, incluindo o sábado.
6.  A morte sacrifical de Cristo foi um sacrifício expiatório pelos pecados da humanidade.
7. O ser humano é uma criatura monística e não dualista. Não existe tal coisa como uma alma que vive mais do que o corpo; a alma não é imortal.
8.  Toda pessoa é livre para escolher e praticar o que ela crê. Liberdade de consciência é algo crucial na fé e prá­tica religiosas.
9.  Religião e ciência verdadeiras não são antagonistas entre si.
Ao passo que a Renascença euro­péia enaltecia o humanismo e, conse­qüentemente, colocava o racionalis­mo humano acima de todas as demais coisas, os cristãos de Novgorod-Mos­cou defendiam um principio básico:
não o conhecimento humano, mas Deus e a Escritura constituem o árbi­tro final de suas idéias.
Conspiração —  Até o final do século 15, as idéias da reforma haviam se espa­lhado por toda a Rússia e eram obser­vadas por todas as classes sociais. O fato de que até alguns membros da fa­mília do czar haviam aceitado os no­vos ensinos incomodava os clérigos ortodoxos. A igreja percebia clara­mente a ameaça ao seu poder e a ne­cessidade de agir sem demora para salvar a si mesma.
A primeira abordagem foi a intri­ga, que ganhou força da união de pessoas ambiciosas dentro da igreja e vários círculos políticos. Os aspec­tos políticos perderam a força na própria corte real. Pouco depois de Ivan III (1140-1505) perder sua es­posa em 1467, ele se casou com Zoe, sobrinha do último imperador bi­zantino, que juntamente com a famí­lia havia buscado refúgio em Roma. Zoe foi criada sob a tutela do Car­deal Bessarion, que viu nela um alia­do em potencial para colocar a Rús­sia sob a influência católica, e atra­vés da Rússia liberar sua terra natal, a Grécia, do imperador bizantino. Através de um amigo intimo muito bem colocado, Bessarion propôs que Zoe se casasse com Ivan III. Logo o romance, o poder e a ambição ecle­siástica se uniram para transformar a intriga em conspiração.
Quando Zoe chegou à Rússia, Moscou, Novgorod e outras cidades se envolveram em um motim religio­so e em uma luta pelo poder na corte de Ivan III. O próprio czar “refor­mou” em parte suas crenças. Além disso, a esposa de seu filho Ivan, her­deiro do trono da Rússia, apoiou pu­blicamente o movimento Novgorod­-Moscou e estava educando seu filho, Dimitrii, na mesma fé. Esse evento abriu caminho para perseguição. Na­quele ano, o primeiro dos concílios da igreja apresentou acusações contra o movimento da reforma, chamando­o de heresia “judaizante” e excomun­gando-o. Essas acusações não dissua­diram o movimento, que continuou a crescer. Enquanto isso, Zoe estava tramando colocar seu filho, Vasilii (1479-1533), no trono. Para isso, ela precisava eliminar Dimitrii, o neto de Ivan III e, por direito, o próximo her­deiro ao trono. Dimitrii era apoiado pelo movimento Novgorod-Moscou por ser um deles; por isso, Zoe se tor­nou inimiga e a principal opositora na luta contra esse movimento.
Em 1497, Vasilii, filho de Zoe, re­belou-se contra seu pai para assumir o trono, mas fracassou. Em 1498, Ivan III anunciou a sucessão do neto Dimitrii ao trono da Rússia e o esta­beleceu como czar. O futuro da Rús­sia parecia promissor, com liberdade e esclarecimento. No entanto, a espe­rança durou pouco. Por meio de su­borno, conspiração e difamação, Zoe alienou o coração de Ivan do neto Di­mitrii, e em 1502 Vasilii foi declarado herdeiro ao trono. Dimitrii e sua mãe foram presos; e, quando Ivan III mor­reu em 1505, eles foram executados.

Fogueiras -  A 27 de dezembro de 1504, Moscou testemunhou a primeira queima de “hereges” na Rússia. Ivan Kuritsyn, Dimitrii Konopliov, Ivan Maksimov e outros foram queimados em gaiolas de madeira, O velho Ivan III, seu filho Czar Vasilii, o metropo­litano Simão, outros bispos e todo o concílio da igreja os acusaram de ju­daizar e os sentenciaram à morte. No mesmo inverno, Ivan Rukavov, o ar­quimandrita do mosteiro de Yr’evs­kii, Kassian e seu irmão Ivan Chiorn­yi, Gridia Kvashnia, Dimitrii Pusto­selov e outros “hereges” menos co­nhecidos foram queimados por causa de suas supostas crenças. Haviam apoiado o estabelecimento de Dirni­trii como czar por direito e estiveram presentes no julgamento de Vasilii; mas agora eram condenados como criminosos. Embora o movimento Novgorod-Moscou tenha sofrido grandes perdas entre as classes mais elevadas, continuava sendo popular entre as classes mais baixas. Em 1511, o Czar Vasilii foi pressionado a intensificar a perseguição aos “here­ges”, para que não acabassem des­truindo a Igreja Ortodoxa na Rússia.
Assim, os reformadores foram varridos do Kremlin. O partido de Zoe triunfou. Ivan III viveu seus úl­timos dias em desapontamento e morreu na obscuridade. Embora a Inquisição na Rússia não tenha atin­gido as proporções a que chegou nos países católicos, as praças das cida­des russas foram iluminadas com os postes incendiados.

Paradoxos —  Foi assim que o progresso do protestantismo e do Iluminismo na Rússia foi detido por causa de in­trigas políticas. Em seu lugar veio o absolutismo sobre os setores social, político e religioso do povo russo. O reinado de Vasilii (1505-1533) foi ca­racterizado pela crueldade e ignorância. Seu filho e sucessor, Ivan IV (1531-1584), tomou-se um soberano sanguinário que aterrorizou a Rússia inteira, ganhando na história o infa­me título de “Ivan, o Terrível”. Mes­mo durante o seu reinado, alguns cristãos permaneceram fiéis aos ensi­nos da Bíblia, incluindo o sábado. O concílio convocado em 1551 durante o reinado de Ivan IV adotou uma re­solução que até o dia de hoje não foi anulada pela Igreja Ortodoxa Russa uma declaração do concílio da igreja reconhecido como sendo autorizado pelos apóstolos Pedro e Paulo!
A notável história da Reforma Russa não é bem conhecida hoje na Rússia. Atualmente, com a queda do comunismo, é importante que o povo recupere a verdade encoberta durante séculos sob as camadas do absolutismo, a cegueira religiosa e o autoritarismo. Embora muitos deta­lhes estejam faltando na história da Reforma Russa, um deles se destaca ousadamente: o movimento da Re­forma na Rússia durante os séculos 15 e 16 germinou no solo russo e, adequadamente cultivado, pode ain­da produzir uma safra de pessoas comprometidas com as verdades bí­blicas. O corajoso exemplo de mui­tos russos, heróis da fé não celebra­dos, pode ainda hoje desafiar os cris­tãos contemporâneos. E uma história que precisa ser contada de novo.

Sinais dos Tempos     Março-Abril/2003


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