Recentemente, a revista National Geographic publicou um documento trazendo o que seria o ponto de vista de Judas Iscariotes sobre a crucificação de Cristo. O papiro de 31 páginas é conhecido como Evangelho Segundo Judas, e é datado entre os séculos 3 e 4. Segundo a imprensa, que divulgou bastante o assunto, acredita-se que o documento seja uma cópia de um original escrito por volta de 150 d.C. Para comentar o assunto, entrevistei o Pastor
Wilson Paroschi, que é doutor em
Novo Testamento pela Andrews University, especialista em Novo Testamento,
Origens Cristãs e Grego Bíblico, e autor de três livros, um deles sobre a
história do texto do Novo Testamento, publicado pela Edições Vida Nova, e outro
publicado em inglês, pela Peter Lang Verlag (da Alemanha).
O que o senhor tem a dizer sobre
esse “evangelho”? O documento existe de
fato. Trata-se de um manuscrito copta (antiga língua egípcia que era escrita
com caracteres gregos) descoberto numa caverna em Al-Minya, no sul do Egito,
por trabalhadores rurais, na década de 1970, e que permaneceu em poder de
negociantes de antigüidades até ser divulgado pela National Geographic Society.
De acordo com a paleografia (ciência que estuda textos antigos), o manuscrito,
que é de papiro, foi copiado no fim do 3º ou início do 4º século. Sabe-se,
porém, que o documento original é mais antigo, tendo sido composto
provavelmente ao redor do ano 150 d.C., pois o escritor cristão Ireneu, bispo
de Lion, fez uma referência a ele por volta do ano 180 d.C. O manuscrito, na
verdade, contém quatro documentos, sendo que um deles traz um colofão (nota no
fim do manuscrito) com o título
“Evangelho Segundo Judas”
(Iscariotes).
De acordo com alguns estudiosos,
o Evangelho de Judas trata-se de uma composição feita por gnósticos cainitas,
seita herética do início do cristianismo. Quais as idéias dessa seita e por que
teriam produzido esse "evangelho"?
O gnosticismo foi uma heresia cristã que desabrochou no segundo século,
quando o cristianismo começou a se espalhar nas terras pagãs do mundo
greco-romano. Essa heresia consistia numa estranha mistura de tradições
cristãs, mitologia grega e
religiões orientais. Não é fácil descrever o gnosticismo em poucas palavras,
mas em linhas gerais, os gnósticos rejeitavam o Deus do Antigo Testamento, como
sendo uma espécie de deus inferior (demiurgo) e repleto de más intenções, e alimentavam
sentimentos anti-semitas. Por causa disso, eles negavam o relato da Criação de
Gênesis e adotavam em seu lugar uma teoria das origens muito complexa,
caracterizada por conceitos
extraídos principalmente da filosofia e mitologia gregas.
Havia vários grupos gnósticos –
os cainitas eram um deles. De acordo com Ireneu, os cainitas declaravam que
Caim derivara sua existência do supremo Poder (do mundo superior) e que o
criador, o demiurgo, tentara destruí-los, mas não conseguira. Eles foram
protegidos por Sofia (sabedoria), que era uma espécie de entidade do mundo
superior. Judas Iscariotes estaria ciente de tudo isso. Ele era o mais
esclarecido (iluminado) dos discípulos. O Evagenlho de Judas, na verdade,
apenas reflete as crenças desse grupo.
Por ter sido superior aos demais
discípulos, Judas não seria de fato um traidor. Tudo fazia parte de um plano
entre o próprio Jesus e Judas. A morte de Jesus, e de Judas, representaria o
momento em que eles (a “alma” deles, que pertencia ao mundo superior) se desvencilhiaria
do corpo (que era mau) e voltaria ao mundo da luz. Para os gnósticos, a
salvação não era obtida por meio da morte de Jesus, mas sim por conhecimento (o
termo “gnóstico” vem do grego gnosis, que significa “conhecimento”), uma
espécie de iluminação
ou despertamento intelectual para
uma nova realidade. Em algum momento, o homem passa a entender sua verdadeira
origem (de sua “alma”), e então ele se torna um “iluminado”. Ao morrer, sua
alma é redimida deste mundo e retorna ao mundo da luz inefável e eterna. Os
gnósticos também não criam na encarnação, nem na restauração final de todas as
coisas, e tinham uma visão do Universo muito estranha, composta de vários céus
ou esferas, separando o mundo superior de nosso mundo.
A revista Época do dia 19 de
fevereiro admite que, "como o Evangelho de Judas é muito posterior ao
tempo em que os eventos teriam ocorrido, não se pode nem mesmo tentar buscar
algo nele sobre a figura histórica de Judas”. Na sua opinião, por que há,
então, tanta especulação em torno do assunto e uma clara desvalorização dos
evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) por parte da mídia secular?
O manuscrito contendo o Evangelho de Judas esteve por trinta anos em poder de
negociantes de antigüidades, cada um tentando lucrar em cima da descoberta. Ele
foi tirado ilegalmente do Egito e então passou pelas mãos de vários
negociantes, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Finalmente foi parar na
Suíça, numa espécie de fundação cultural. Acontece que os
negociantes não conseguiram
auferir o lucro que planejaram, e como na Suíça há uma lei segundo a qual o
comércio de antigüidades sem pedigree (certificado de origem) é proibido, a
única forma de lucrar com o documento foi vendendo seu conteúdo. A National
Geographic Society pagou algo em torno de um milhão e meio de dólares para
poder divulgar o documento. E para tentar obter o retorno do investimento,
criaram uma trama
sensacionalista, apresentando o
evangelho como o mais autêntico e confiável de todos.
Algo como a verdadeira história
da morte de Jesus e o verdadeiro papel desempenhado por Judas, que nada teria
de vilão e traidor. Interesses puramente comerciais cercaram a iniciativa da
National Geographic.
Poucos se interessariam se a
manchete se referisse a um documento herético e espúrio
do segundo século que apresenta
uma versão fictícia sobre os fatos que conduziram à morte de Jesus.
Sabe-se da existência de pelo
menos três dezenas de evangelhos apócrifos, muitos deles atribuídos a nomes
conhecidos no cristianismo primitivo, na tentativa de atribuir autoridade ao
seu conteúdo. Quais as diferenças entre esses textos e os canônicos, e qual a
importância histórica dos “evangelhos” de Pedro, Maria, Nicodemos, Tomé, Judas,
etc.?
Nem todos os evangelhos apócrifos
foram produzidos por hereges. Alguns o foram por autores alinhados com a
ortodoxia cristã num esforço por preencher algumas lacunas da vida de Jesus,
como a infância e a juventude. Quer sejam ortodoxos, quer seja heréticos, os
evangelhos apócrifos (e outros escritos como Atos e Epístolas) foram produzidos
por razões apologéticas, isto é, para defender aspectos particulares de uma
crença, doutrina, ou teologia. E,como você destacou em sua pergunta, muitos
desses evangelhos eram
atribuídos a nomes conhecidos do
círculo apostólico (Pedro, Tomé, Filipe, Bartolomeu,
Judas, Matias) ou da vida e
ministério de Jesus (Maria Madalena, Nicodemos) com o intuito de conferir
autoridade ao conteúdo. Os textos apócrifos em geral, porém, são muito
diferentes dos evangelhos canônicos. Eles retratam um mundo diferente, repleto
de magia, de faz-de-conta, de mitologia, e todos eles têm uma agenda em
particular, que é preencher supostas lacunas na biografia de Jesus apresentada
nos evangelhos canônicos e, principalmente, defender idéias ou doutrinas
próprias. Quando olhamos para os evangelhos
canônicos (Mateus, Marcos, Lucas,
e João), vemos que todos eles, conquanto diferentes entre si, apresentam a vida
e os ensinos do mesmo Jesus. Há unidade de pensamento e em todos eles o ponto
central do evangelho é o sacrifício de Jesus. Esse é o verdadeiro evangelho – a
história do Deus que Se fez homem e morreu como homem para a salvação da raça
humana.
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