Cristianismo Global
Católicos e luteranos assinam acordo doutrinário e impulsionam movimento
pela união dos cristãos
por Marcos De
Benedito
Colaborador
O sonhado e mágico ano 2000 está aí. Com ele,
renova-se a esperança de dias melhores nas diferentes arenas em que se joga o
destino da humanidade. Uma dessas arenas é a das relações entre as igrejas.
Mais do que nunca, líderes cristãos estão unindo esforços para formar um
único bloco religioso.
Um resultado desses esforços foi alcançado no dia 31 de outubro último,
com a assinatura da Declaração Conjunta da Justificação, feita por católicos e
luteranos.
O interesse pela unidade cristã tem
até nome próprio: ecumenismo. Atualmente a palavra define o diálogo e o bom
convívio com pessoas de diferentes confissões religiosas, ou mesmo a sua total
unidade.
O desejo de um cristianismo unido não
é novo. Nasceu com o seu próprio fundador. Numa intensa oração feita na
véspera de ser pregado na cruz, Jesus suplicou que todos os Seus seguidores
presentes e futuros fossem “um” e se tornassem “aperfeiçoados na unidade”
(João 17:20-23).
Cisões — Menina dos olhos de Cristo, a igreja tem origem divina, mas é formada por
seres humanos. Como era se esperar, disputas e dissensões logo apareceram. O
primeiro grande cisma aconteceu em 1054, por motivos culturais, políticos e
teológicos. A gota d’água foi a inclusão no credo da igreja de uma cláusula
sobre a origem do Espírito Santo. As igrejas orientais não aceitaram a
interpolação, e o cristianismo partiu-se em dois: a ala oriental (Igrejas
Qrtodoxas, com a sede principal em Constantinopla, hoje (Istambul) e a ala
ocidental (Igreja Católica, com sede em Roma).
Outra grande divisão se deu dentro da
própria Igreja Católica, no século 16, por razões teológicas, políticas e
morais. A liderança da igreja estava corrupta, e o movimento reformista
liderado por Martinho Lutero, entre outros, procurou pôr ordem na casa. Em 31
de outubro de 1517, Lutero afixou suas 95 teses na porta da igreja de Wtttenberg,
Alemanha. Isso deu origem ao protestantismo e abriu espaço para o leque de
denominações cristãs hoje existentes.
Unidade sonhada — Com o tempo, o anseio por unidade ressurgiu e ganhou ressonância.
Modernamente, as vozes pioneiras defendendo o ecumenismo apareceram no final
do século 19. Nas primeiras décadas do século 20, vários teólogos importantes
assumiram o discurso ecumênico. Um deles foi Oscar Cullmann (1902-1999), que,
apesar de sua formação luterana, foi recebido pelos papas Pio XII, João XXIII
e, sobretudo, Paulo VI, sendo pessoalmente convidado a participar como
observador do Concílio Vaticano II, na década de 1960. Por isso, o teólogo suíço Karl Barth costumava brincar que na
lápide de seu amigo Cullmann seria escrito: “Aqui jaz o conselheiro de três
papas.”
Mas foi a partir de 1948, com a igreja de uma
cláusula sobre a origem fundação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em
Amsterdã, que o movimento ecumênico ganhou força. Sediado em Genebra, Suiça, o
CMI conta atualmente com 339 igrejas membros, representando mais de 500 milhões
de cristãos protestantes, anglicanos e ortodoxos de mais de 100 países, nos
cinco continentes. A Igreja Católica não faz parte, mas coopera com o
organismo.
Na década de 1960, o Concílio Vaticano II
deu ao ecumenismo uma nova dimensão e importância, ao definir que a Igreja
Católica deveria incentivar e promover a unidade cristã.
“Este sagrado Concilio exorta todos os fiéis
católicos a reconhecer os sinais dos tempos e a participar ativamente no
trabalho do ecumenismo”, dizia um dos documentos.
No embalo do Concílio, uma
série de diálogos entre católicos e lideres de outras tradições religiosas teve
inicio, principalmente nos Estados Unidos. Com isso, o número de encontros, comissões,
documentos e publicações sobre o assunto se multiplicou.
O papa João Paulo II, por sua vez, incorporou o espírito conciliador do
Concilio Vaticano II, chegando a afirmar que a tarefa ecumênica é uma das
“prioridades pastorais” de seu pontificado. A encíclica “Que Todos Sejam Um”,
divulgada em maio de 1995, é um forte chamado à unidade. Para
o papa, o ecumenismo é parte da vida e da missão da igreja.
João Paulo II está convencido de que “a unidade de toda a dividida humanidade,
é a vontade de Deus.” “Crer em Cristo significa desejar a
unidade”, salientou em uma carta que enviou ao secretário-geral do CML, por
ocasião do cinqüentenário desse organismo, celebrado em dezembro de 1998, em
Harare, capital do Zimbabwe, África.
Os frutos de toda essa articulação estão aparecendo. Atualmente, católicos
e ortodoxos reconhecem que apenas diferenças superficiais os impedem de manter
plena comunhão. Anglicanos e católicos estão em adiantada fase de
entendimento.
Um dos passos mais significativos foi dado no dia 31 de outubro último
(1999), quando católicos e luteranos assinaram a Declaração Conjunta Sobre a
Doutrina da Justificação, na cidade de Augsburg, Alemanha.
Para ver a íntegra da
Declaração Conjunta da Justificação assinada por católicos e luteranos, ver www.arquidiocese-sp.org.br. Para mais informações, consulte os
seguintes sites e seus links:
www.wcc-coe.org e
www.nccbuscc.org.
Em um de seus pontos altos,
o documento diz: “Juntos confessamos:
só pela graça e pela fé na ação salvadora de Cristo, e não com base em nossos
méritos, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que renova
nossos corações e nos habilita e conclama a realizar as obras do bem.”
Obstáculos —
Mas, apesar da euforia em torno dessa e de outras declarações, nem todos
partilham do mesmo otimismo. Um documento assinado por 139 teólogos
protestantes da Alemanha, em resposta ao novo manual sobre indulgências que a
Santa Sé divulgou em setembro, reclama que a Igreja Católica na realidade não
mudou suas posições. Para o teólogo Joachim Ringleben, a Declaração sobre
Justificação é “um absurdo”, já que a Reforma começou justamente como critica
ao sistema de indulgências.
A sensação, para muitos, é que se está passando por cima de uma série de
diferenças reais, em nome de uma união religiosa-política. Por amor á unidade,
sacrifica-se a convicção, no melhor dos casos, e a verdade, no pior. Outros
criticam a orientação política do CMI, questionam se a entidade conseguiu
algum resultado concreto em todos esses anos de militância e até mesmo indagam
se o movimento ecumênico ainda está vivo ou é viável.
Na área teológica, há vários obstáculos a serem transpostos. Os protestantes
ainda divergem dos católicos especialmente quanto à exclusividade da Bíblia, ao
status de Maria, infalibilidade papal, salvação, sacramentos e eucaristia.
De todas as diferenças, a autoridade papal é uma das mais polêmicas. Irão
os protestantes aceitar o primado universal do bispo de Roma?
Num encontro ecumênico, em 1997, no Canadá, John A. Baycroft, bispo da
Diocese Anglicana de Ottawa, revelou que considera o bispo de Roma “um dom de
Deus” para todo o cristianismo. Alegou que uma autoridade universal seria o
corolário necessário de uma comunhão universal. Já Lynne E. Lorenzen, teóloga luterana, propôs a estrutura da
Federação Luterana Mundial (FLM) como modelo de liderança ecumênica. As
igrejas luteranas que compõem a FLM subscrevem uma cláusula teológica
consensual mínima, gozam de comunhão entre si, mas mantêm certa independência — ou sejá, como diz o nome, a FLM é uma
federação, e não uma igreja.
De sua parte, o teólogo batista Clark Pinock expressou admiração pelo papa
João Paulo II, mas deixou claro que, para o pensamento independente dos
batistas e de outros cristãos protestantes, é muito difícil aceitar a
centralização da autoridade em uma só pessoa. “Não queremos um papado que acha
que pode dar a palavra final e infalível sobre tudo.”
Pamela Dickey Young, teóloga feminista da Igreja Unida do Canadá, fez a
crítica mais forte ao modelo papal.
Segundo ela, o que garante “apostolicidade” (ligação com os apóstolos)
não é uma sucessão ininterrupta de imposição de mãos, mas a fidelidade à
mensagem do evangelho. Só um “papado” “apropriado ao evangelho” seria
aceitável. Esse papado, é claro, deveria estar aberto às mulheres.
Para um observador neutro, parece que todos os caminhos levam a Roma. Ou
seja, se o ecumenismo virar realidade, o papado e a tradição católica
certamente farão parte do pacote — para o bem ou para o mal.
A conclusão sensata deste rápido panorama ecumênico é que a unidade entre
os cristãos é desejável, mas não a qualquer preço. O ecumenismo cristão só será
legítimo se: (1) nascer do amor a Deus, ao próximo e à verdade; (2) for
construído em torno de Cristo, e não em torno de figuras ou programas humanos;
(3) constituir uma volta às raízes apostólicas, pautando seu ensino e prática
pela Bíblia; (4) buscar legitimamente construir o reino de Deus; (5) não formar
um monopólio discriminador das minorias que pensarem diferente.
Enquanto esse ecumenismo ideal não aparece, os cristãos podem sinceramente
orar uns pelos outros e praticar a conhecida máxima: “Nas coisas essenciais,
unidade; nas coisas secundárias, diversidade; e, em todas as coisas,
caridade.”
Sinais dos Tempos
Jan.-Fev./2000
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