Um Deus sanguinário?
Saber por que Deus mandou matar no tempo
do Antigo Testamento evita mal-entendidos
Michelson Borges
Editor associado
Numa época em que o terrorismo e o
fundamentalismo religioso estão sendo amplamente discutidos, surgem algumas
dúvidas e confusões com relação a certos textos bíblicos. Robert Wright, autor
de O Animal Moral: Psicologia Evolucionária e
o Cotidiano, chegou a escrever que “Se Osama Bjn
Laden fosse cristão e quisesse destruir o World Trade Center, citaria a reação
violenta de Jesus contra os vendilhões do templo” -
Exageros á parte, Wright não é o único escritor contemporâneo a comparar a
postura de terroristas com certas passagens das Escrituras, especialmente
aquelas em que Deus aparece intervindo de forma drástica na vida humana ou
ordenando a morte de pessoas. Mas o Deus do Antigo Testamento não é menos
amoroso do que o Deus revelado por Jesus.
Para Chris Blake, autor de Searching for a God to Love (Procurando um Deus para
Amar), “figuras de doenças em um livro de medicina não refletem o médico; elas
ilustram a grande necessidade de cura” A comparação é boa, uma vez que conhecer
o contexto do Antigo Testamento — e as
“doenças espirituais” do povo de Deus — ajuda e muito
a entender certas reações divinas.
Blake faz outra comparação: “Deus Se revelava ao povo do Antigo Testamento
como uma persiana num quarto escuro — uma lâmina por vez — para que
eles se acostumassem aos poucos com a luz. Se Ele houvesse aberto totalmente a
persiana e revelado Sua deslumbrante ternura e tremenda bondade, a luz teria
cegado os antigos. Eles não teriam visto coisa alguma.”
Quando se conhece o contexto cultural da época pode-se perceber que, na
verdade, o Deus do Antigo Testamento é o mesmo no Novo. Se não, note este
texto bíblico: “Amaras o teu próximo como a ti mesmo.” São palavras de Jesus, certo? Certo. Mas
elas estão registradas em Levítico 19:18, como tendo sido ditas primeiramente
por Yahweh ao povo de Israel. Ainda que tenham sido necessárias atitudes
extremas da parte de Deus em alguns momentos da História, uma coisa fica clara
para o estudante da Bíblia: indiscutivelmente, do Gênesis ao Apocalipse, “Deus
é amor” (1o. João 4:8).
Mas, se Deus é amor, por que Ele mandou matar? Esta é a pergunta que se impõe quando certas passagens bíblicas são
analisadas. A primeira dificuldade em se lidar com essa questão e justamente a
pequena compreensão que o ser humano tem do caráter de Deus. As pessoas formam
seus valores e tomam suas decisões através do paralelismo ou comparação.
Escolhem este ou aquele produto comparando cores, formas, sabores, preço. Com
relação ao divino. não ha com o que ou com quem compara-lo. Os padrões da dimensão
terrena e finita não podem ser parâmetros ou projeções para aquilo que está
infinitamente acima da percepção e do conhecimento humanos.
Conseqüências—A Bíblia
fornece algumas pistas sobre a pessoa de Deus. Ela diz que Deus é puro, santo,
justo e amoroso. Sua santa lei tambérn possui esses atributos, pois é a
expressão de Seu caráter. Assim, a conseqüência negativa surge porque o padrão
divino para a vida humana é rompido. O “castigo” antes de ser um ato isolado de
um Ser superior e rigoroso, nada mais é do que o exercido zeloso e exigente da
própria virtude que foi desprezada.
A não observância da virtude divina da pureza, por exemplo, foi a causa
de muitas conseqüências negativas para o ser humano. A impureza que se
alastrava condenou toda a geração de Noé, numa oportunidade para um novo começo
da raça humana. Note-se a grande longanimidade de Deus: Noé pregou por 120 anos
que viria a destruição, mas os antediluvianos preferiram assumir as
conseqüências.
Outro exemplo de extrema impureza: Sodoma e Gomorra. A destruição destas
duas cidades evidencia a consequência do pecado. É uma das páginas mais tristes sobre o ponto a que
pode chegar a depravação do ser humano. Não havia outro jeito. A impureza,
cujo clamor subira aos Céus, tinha que ser exemplarmente condenada, como a um
câncer que precisa ser extirpado, sob o risco de comprometer aquilo que ainda
está são.
Por outro lado, Deus poupou a cidade de Nínive em circunstâncias
semelhantes, devido ao arrependimento de todo o povo. Isso deixa evidente a
misericórdia divina (ver Jonas 3:1-10).
A impureza na vida impede o ser humano de se aproximar de Deus. Foi o que
aconteceu com Nadabe e Abiú. Por serem filhos do grande sacerdote Arão,
julgavam que poderiam apresentar-se diante de Deus da forma como lhes
convinha, e não de acordo com os preceitos divinos. As cerimônias do santuário
apontavam para a obra intercessória de Cristo, e tinham um caráter sagrado. A
impureza dos dois hebreus foi castigada: “Ora, Nadabe e Abiú [...] ofereceram
fogo estranho perante o Senhor, o que Ele não ordenara.
Então saiu fogo de diante do Senhor, e os devorou; e morreram
perante o Senhor” (Lev 10:1 e2).
Posteriormente, por não ter outro
alimento, Davi comeu dos pães da proposição), o que não era permitido (ver 1 Sam.
21:4-6). Mas Deus não o matou. Isso demonstra que a irreverência e mais uma
disposição do coração do que meramente atos exteriores.
Santidade e pureza andam de mãos dadas.
Enquanto pureza é eliminar tudo aquilo que prejudica o viver, santidade é somar
tudo aquilo que exalta e dignifica o ser humano; enquanto pureza é retirar do viver ético
tudo aquilo que rebaixa a vida moral, santidade é acrescentar padrões divinos
a vida, pela comunhão com Jesus.
Santidade e o segundo padrão pelo qual o
ser humano deve caminhar. Assim, a quebra deste padrão também traz consigo
desgraças inevitáveis.
Israel estava diante da sonhada terra
prometida. O grande confronto da santidade exigida do povo teria inicio a
partir do momento em que a terra começasse a ser conquistada. Isso porque os
povos que ali viviam não eram nada santos. Pelo contrário, eram imorais, violentos
e idólatras, praticando toda sorte de profanação e ofensas ao nome de Deus. Essa diferença teria
que ser clara e evidentemente absorvida pelo povo de Israel.
O padrão divino de santidade começou
a ser mostrado através da cidade de Jericó e tudo o que nela havia: “A cidade,
porém, com tudo quanto nela houver, será anátema ao Senhor; somente a prostituta Raabe viverá, ela e todos os que estiverem em casa” (Jos.
6:17). Raabe aceitou os termos do Senhor e foi salva, da mesma maneira que aqueles
que aceitarem a Palavra de Deus serão salvos.
O Senhor ainda advertira Israel
para não tomar nada do que fosse
de Jericó — símbolo do
pecado. A ambição de Acã foi maior e ele tentou esconder consigo algumas riquezas. Resultado: foi
apedrejado e suas coisas queimadas (Jos. 7:15, 24 e 25).
Como escreveu Chris Blake, “Deus levantou Sua voz freqüentemente no Antigo
Testamento para atrair a atenção dos filhos de Israel”. De fato, Deus
precisava ser “duro” com Seu povo; afinal, Ele os havia conduzido até ali para
serem luz para outros povos. O perigo da paganização era constante. As nações
vizinhas possuíam divindades de caráter fundamentalmente violento e imoral,
que conduziam o povo á guerra e a depravação. Os cultos eram verdadeiras orgias,
com sacrifícios até de vidas humanas. Não havia como compactuar. O povo que
deveria ser santo porque o seu Deus é santo tinha que lutar e eliminar por
completo tais pecados.
A justiça é outro padrão para o qual não temos paralelismo. Por isso, hoje,
nem sempre é possível entender exatamente o porquê de certas coisas terem
acontecido. Como exemplo da quebra deste padrão, tomemos apenas uma passagem: “Estando, pois. os filhos de Israel no
deserto, acharam um homem apanhando lenha no dia de sábado. E os que o acharam
apanhando lenha trouxeram-no a Moises e a Arão, e a toda a congregação e o
meteram em prisão, porquanto ainda não estava declarado o que se lhe devia
fazer Então disse o Senhor a Moisés: “Certamente será morto o homem; toda a
congregação o apedrejara” (Num. 15:32-36).
Será que foi agradável para aquelas pessoas apedrejarem o homem? E por que
“toda a congregação” deveria participar da terrível cena? Os preceitos para a
vida de obediência e adoração a Deus já tinham sido declarados por Moisés. O
Senhor queria que o povo entendesse a importância de Seus mandamentos. O
transgressor do sábado, certamente não arrependido de seu feito, foi morto
como exemplo da justiça divina e da gravidade do pecado. Se Deus perdoasse o
homem em rebelião consciente, Satanás seria o primeiro) a acusa-Lo de injusto.
É preciso que entendamos que o caminho da justiça de Deus se faz muitas
vezes de forma incompreensível para nos, e que o Senhor não tem “prazer na
morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho e viva” (Eze.
33:11).
A quarta razão pela qual as manifestações negativas de Deus estão registradas
na Bíblia é decorrente não da falha do ser humano diante de qualquer padrão
divino, mas de uma decisão soberana e amorosa de Deus.
Por incrível que pareça, apenas uma vez o Senhor vai Se manifestar
negativamente por causa do amor, e esta única vez é contra Ele mesmo: “Pois
Deus amou tanto o mundo, que entregou o Seu Filho único, para que todo o que
nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16, Bíblia de Jerusalém). A palavra “entregou” poderia ser substituída
por –“matou”. Sim, porque não foi nada mais, nada menos do que isso.
Deus amou tanto a cada um dos seres humanos que deu o que mais amava: Seu único Filho. Quando Deus comissionou os anjos para
guiar os pastores ate Belém em forma de uma linda estrela, sabia que ela apontava
para o Golgota.
O Pai Celestial sempre visou ao bem da humanidade. E para isso não poupou
esforços, correndo mesmo o risco de ser mal interpretado. Por que Ele Se afligiu até suar sangue e morreu
por decisão própria? Porque Deus, o Senhor, é puro, santo, justo e amoroso.
Sinais dos Tempos
Maio-Junho/2002
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