A CURA DO MAL DE ASAFE
Essa doença sempre fez
Vítimas entre o povo de Deus
O pós-modernismo, segundo Zygmunt BaumanI, autor de Ética pós-moderna,
caracteriza-se por ambivalência moral, nenhum código ético coerente, fim da
moralidade universal, moralidade contraditória, pluralismo moral, fragmentação da
verdade, personalismo moral, não reconhecimento de autoridade, ausência moral
do Estado, ressurreição do paroquialismo e do tribalismo, rejeição da
Revelação. Nesse ambiente filosófico, promove-se o surgimento de todo tipo de
pecados e aberrações, quer contra Deus, quer contra a sociedade, contra
instituições, contra a natureza e as pessoas. A mentira tornou-se o idioma do pragmatismo
de uma sociedade secularizada, ególatra e sensual. Roubar, seguido ou não de
morte da vítima, tornou-se prática comum dos que desejam sobreviver ou acumular
fortunas. Em uma das ruas do centro de Curitiba, uma família sem teto
preparava-se para dormir debaixo de uma marquise. Antes de se enrolarem em suas
pobres e empoeiradas cobertas, colocaram um pedaço de papelão, ajoelharam-se e
oraram antes de dormir. Cenas como essas nos lembram constantemente que o mal
já está maduro para ser punido e eliminado. Por isso, vem-nos à mente a
pergunta do vidente de Patmos: ''Até
quando, ó Soberano Senhor?" Não raras vezes, fazemos essa pergunta
diante das incertezas da vida: Até quando continuarei sendo um pobre honesto
vivendo no meio de ricos desonestos? Até quando continuarei fiel, mesmo sendo
injustiçado?
Nessas circunstâncias, a experiência vivida pelo poeta e músico sacro
Asafe torna-se uma grande ajuda. Consideremos o salmo 73 para descobrirmos o
mal que atormentou aquele compositor e como ele conseguiu cura definitiva para
sua alma.
O mal de Asafe2 - Asafe não era um mero musicista. Na verdade,
era um dos principais levitas. Cantor, compositor e músico instrumentista que
servia a Deus, junto com Jedutum e Hemã. I
Crônicas 25:5-6 informa que ele também serviu a Deus, como profeta, no
remado de Davi. Por ocasião do episódio do transporte da Arca, da casa de
Obede-Edom para a tenda armada por Davi, a fidelidade de Asafe motivou o rei a
promovê-Io a ministro da música. Seus instrumentos preferidos eram: harpa,
alaúde e címbalo.
Junto com quatro mil levitas, Asafe louvava continuamente ao Senhor.
Liderou um grupo de 288 mestres da música, aos quais chamava seus filhos. Escreveu,
junto com eles, doze dos 150 salmos contidos na Bíblia. Ele conhecia a bondade
de Deus para com Israel. Asafe desfrutava da intimidade do rei e do seu
ambiente no palácio. Alguns pensam que foi dentro da casa real que começou a
sua crise, quando conheceu a prosperidade do ímpio Absalão. Mas parece que a
crise de Asafe tinha raízes mais profundas, pois ele sentava-se no lugar, não
do ímpio, mas do próprio Deus, que, segundo sua visão, era o protetor de toda a
impiedade.
A declaração de abertura do cântico, no verso 1:"Com efeito, Deus é bom para com Israel, para com os de coração
limpo" pode situar-se antes e depois da crise. Asafe diz no verso 2: "Quanto a mim, porém, quase me
resvalaram os pés; pouco faltou para que se desviassem os meus passos. Pois eu
invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos perversos:' Para
Asafe, os ímpios não tinham preocupações, não enfrentavam problemas de ordem
financeira, nem pareciam sofrer de enfermidades. Erguiam-se em sua violência
contra os pobres, e sua altivez era dirigida contra Deus, com ar de ironia,
fazendo pouco caso da existência do Senhor e da Sua justiça (versos 4-13).
À semelhança de todos os judeus piedosos, Asafe desejava alcançar saúde e
pureza espiritual. Isso, porém, não o tornava imune às enfermidades
degenerativas. Pela leitura do verso
14, podemos até pensar que Asafe estava sofrendo de alguma enfermidade
grave. A situação do salmista poderia ser lida na declaração de Rui Barbosa:
"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de
tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos
dos maus, o homem chega a ter vergonha de ser honesto."
Salvo por um triz- A ênfase
da confissão de Asafe é dramática:
"quase me resvalaram os pés, pouco faltou para que
se desviassem os meus passos". Isso que dizer que pouco faltou para chegar à incredulidade. Pouco
faltou para que ele rompesse com a idéia de um Deus sábio, bom e justo. Ele
esteve perto de uma violenta mudança de pensamento é de comportamento. Por
pouco, Asafe não contrariou o que está registrado no Salmo 78:3-4: "O que ouvimos e aprendemos, o que nos contaram
nossos pais, não o encobriremos a seus filhos; contaremos à vindoura geração os
louvores do Senhor, e o Seu poder, e as maravilhas que fez."
Alguém escreveu que, se fosse hoje, Asafe teria trocado "Jesus, alegria
dos homens", de J. S. Bach, por outra música que o levasse à fama; talvez
pelas pobres produções religiosas, que misturam fé com sensualismo, mas vendem.3
Quase Asafe trocou o templo do Senhor por um templo pagão, por um terreiro ou
uma bola de cristal.
Ele estava a um passo do inferno, da perdição, da incredulidade. A erosão
foi lenta, mas progressiva. Essa é a característica da apostasia. Nenhuma queda
acontece por impulso momentâneo. Há antecedentes de condescendência própria, de
aceitação do pecado em sua forma embrionária. Quantas vezes, Asafe desejou vingar-se.
Quantas vezes foi açoitado pela ira; quantas vezes, quis projectar-se por meio
do egoísmo; quantas vezes, foi atiçado pela lascívia; quantas . vezes, sentiu
desânimo e preguiça!
Certo dia, ele acordou sentindo-se frustrado e pensou: "Com efeito, inutilmente conservei puro
o coração e lavei as mãos na inocência. Pois de contínuo sou afligido e cada
manhã, castigado" (versos 13 e 14). Pensou: "Será que foi à toa que me esforcei
para não pecar e permanecer puro?" O que mais o desnorteou foi a
falsa impressão de que o seu zelo não lhe rendia nada. Sua conclusão foi de que
Deus não o tratava de modo especial. Ele não era poupado das intempéries, do
cansaço, da aflição, da doença. Isso parecia não ocorrer com os ímpios - os
notáveis.
Era um puro no anonimato.
Comparação - A comparação dos efeitos do mal de Asafe com os
causados pelo mal de Alzheimer revela significativas semelhanças. O conhecido mal
de Alzheimer recebe este nome de Alois Alzheimer, médico alemão que, em 1906,
reconheceu e localizou uma doença que corrói a mente, apaga progressivamente
todas as lembranças e transforma o outrora corpo sadio e vibrante em um saco de
carne e ossos que ainda se movimenta, pelo menos nos primeiros anos de
enfermidade.
Mas o esvaziamento da memória também esvazia a vida de relacionamentos e
movimentos. Na revista Veja4, a professora Yone Beraldo,
filha da costureira Adeilde de Moura, vítima dessa doença, afirma: "Eu
perco minha mãe um pouco cada dia:' Adeilde, costureira desde a juventude,
agora já não sabe mais costurar; entregou-se ao desleixo e à agressividade. A
filha desabafou: "Vivo um luto diário:'
O mal de Asafe não está catalogado como enfermidade, mas tem efeito
semelhante na memória espiritual de uma pessoa, pois também corrói a mente pelo
apagar progressivo de todas as certezas da vida em Cristo e por transformar a
alma em um saco de dúvidas e revolta.
Ellen G. White escreveu: "É
assim que Satanás ainda procura conseguir a ruína da alma. Uma longa operação
preparatória desconhecida ao mundo, tem lugar no coração, antes que o cristão
cometa francamente [abertamente] o pecado. A alma não desce de pronto da pureza
e santidade à depravação, corrupção e crime. Leva tempo para que se degradem aqueles que foram formados à imagem
de Deus, ao estado brutal e satânico. Pelo contemplar nos transformamos. Alimentando
pensamentos impuros, o homem pode de tal maneira conduzir a mente que o pecado,
que uma vez lhe repugnava, tornar-se lhe-á agradável".5
No entanto, Asafe resistiu a toda dúvida e sentimentos negativos.
Afastou-os por amor do Senhor e por causa de Seu nome. Infelizmente, nem todos
encontram a cura que Asafe alcançou. Balaão parece ter sido vítima desse mal. O
pecado tornou-o mais embrutecido que um animal. O mesmo poderia ser dito de
Demas, jovem ministro que participou das experiências missionárias de Paulo e
sua equipe. O lamento de Paulo sobre sua apostasia dá-nos a entender que Demas
não resistiu ao desejo da riqueza e de uma vida fácil: "Porque Demas, tendo amado o presente século, me abandonou e se
foi para Tessalônica:' -(11Tim. 4:10.) o fracasso de Templeton- Na
crónica evangélica, Charles Templeton6 é outro caso fatal do mal de
Asafe. Ele foi um evangelista de tão grande sucesso que alguns pensaram que
eclipsaria Billy Graham em bem pouco tempo. Ambos estão sofrendo de males
físicos degenerativos. Graham, aos 80 anos de idade, mal pode se firmar em pé,
sem a ajuda do púlpito. Está acometido do mal de Parkinson. Em 1949, aos 30
anos de idade, enquanto se preparava para a grande cruzada de Los Angeles,
Billy já era amigo de Charles Templeton. Nessa época, Billy tornou-se alvo de
grande incerteza: Como podia confiar plenamente no que a Bíblia lhe dizia? Ele revelou
que duas forças operavam de modo contrário sobre sua vida, nessa ocasião. Uma
força era representada por Henrietta Mears, uma cristã comprometida com a
Palavra, e que impulsionava Billy em direção a Deus. A outra força era
representada por Charles Templeton, que injetava dúvidas na mente do grande
pregador. Este sabia que, se não pudesse confiar na Bíblia, não tinha como
prosseguir pregando. Billy conta que a influência de Charles Templeton estava
"ganhando a queda de braço". Contudo, o fardo de dúvidas foi removido
por Deus quando Billy clamou por auxílio do Céu. A cruzada de Los Angeles teve
grande sucesso, assim como todo o ministério do mais famoso evangelista do
século 20.
Adeus a Deus- Templeton, infelizmente, não conseguiu resolver
suas dúvidas. Ele disse acerca de Billy Graham que este havia cometido o
suicídio intelectual ao fechar sua mente ao questionamento da fé. Na verdade, o
contrário aconteceu: Templeton foi devastado por dúvidas cada vez maiores. Renunciou
ao ministério e tornou-se comentarista e romancista, no Canadá. Suas dúvidas
podem ser sumarizadas em oito pontos:
'(1) Uma vez que o mal e o sofrimento existem, não pode haver um Deus
amoroso;
2) Uma vez que os milagres contradizem a ciência, não podem ser
verdadeiros;
3) Se Deus realmente criou o Universo, por que as evidências persuasivas da
ciência impelem tantas pessoas a concluir que o processo espontâneo da evolução
explica a vida?
4) Se Deus é moralmente puro, como pode sancionar o massacre de crianças
inocentes, como afirma o Antigo Testamento?
5) Se Jesus é o caminho único para o Céu, que dizer dos milhões de
pessoas que nunca ouviram falar dEle?
6) Se Deus Se preocupa com as pessoas que criou, como pode entregar
tantas delas a uma eternidade de tormento no inferno somente porque não creram
nas coisas certas a respeito dEle?
7) Se Deus é o dirigente supremo da igreja, por que ela tem estado
repleta de hipocrisia e brutalidade ao longo dos séculos?
8) Se ainda sou assaltado por dúvidas, ainda posso ser cristão?"
Curiosamente, Templeton tornou-se também vítima do mal de Alzheimer. Sua
enfermidade física agravou sua condição espiritual. O sumário de sua história é
que Templeron não soube conciliar o sofrimento dos outros e o dele com a
bondade de Deus. Naufragou na fé e tornou-se ateu.
Um de seus livros mais contrastantes com o seu passado de homem de fé
intitula-se Parewell to God:.my reasons for rejecting the Christian
faith (Adeus a Deus: minhas razões para rejeitar a fé cristã).
Graças ao Senhor, Asafe agiu de modo diferente de Templeton. Resistiu a
todos seus sentimentos negativos e deles se livrou por amor do Senhor e por
causa de Seu nome. Asafe foi salvo no meio do processo de apostasia mental. Foi
salvo antes que seus pensamentos se tornassem ações pecaminosas. Nesse
extraordinário cântico de fé - o salmo 73 - Asafe prescreve três salvaguardas
contra a tentação.
Três salvaguardas
Asafe controlou a língua. Ele disse: "Se eu pensara em falar tais palavras, já aí teria
traído a geração de Teus
ftlhos. Em só reflectir para
compreender isso, achei mui pesada tarefa
para mim" (versos 15 e 16).
Ele rejeitou a tentação de
conversar acerca de suas
dúvidas, de sua inveja. Não
espalhou sementes de incredulidade contra o caráter de Deus e Sua
obra. Ellen White aconselha:
"Quando alguém vos pergunta como vos sentis, não
penseis em qualquer coisa triste para contar a fim de atrair simpatia. Não
faleis de vossa falta de fé e de vossas aflições e sofrimentos. O tentador se
deleita em ouvir palavras assim. Quando falais em assuntos sombrios, estais a
glorificá-lo. Não devemos nos demorar no grande poder de Satanás para nos
vencer."7
Asafe fez uso da sua memória religiosa. Ele tinha convicção do cuidado de Deus ao longo de sua vida e na
história do seu povo. Assim, podia confessar não apenas que "Deus é bom
para com Israel", mas que o Senhor é bom "para com os de coração limpo" (verso 1). Um dos
recursos de que lançou mão foi a lembrança de que é "bom estar junto a
Deus" (verso 28). Ellen G. White aconselha:
"Quando o pecado luta pelo predomínio no coração,
quando a culpa oprime a alma e sobrecarrega a consciência, quando a
incredulidade obscurece a mente -lembrai-vos de que a graça de Cristo é
suficiente para subjugar o pecado e banir a escuridão. Entrando em comunhão com
o Salvador, penetramos na região da paz:'8
O santuário é o último lugar de onde brilhou e continua brilhando a luz
para o povo adventista. Asafe abriu sua vida ao Senhor do santuário. O assalto
espiritual cessou quando ele entrou "no santuário de Deus" e atinou
com o destino dos ímpios (verso 17).
Podemos dizer que Asafe entrou no lugar certo. Podemos agir da mesma
forma quando assaltados por dúvidas sobre o caráter e ações do soberano Deus. Asafe
foi ao santuário e ali contemplou não apenas o fim dos ímpios, mas
a recompensa dos fiéis. E confessou: "Tu
me seguras pela minha mão direita. Tu me guias com o Teu conselho e depois me
recebes na glória. Quem mais tenho eu no Céu? Não há outro em quem eu me
compraza na Terra. Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a
fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre" (Sal. 73:23-26).
No santuário, Asafe orou, mas não argumentou. Recobrou-se de sua' crise
espiritual. Sua vida estava garantida pela única segurança que ele tinha no Céu
e na Terra. A morte não era o fim do justo. Ele recobrou não apenas sua fé e
esperança no Senhor, mas integrou-se novamente na missão de proclamar a bondade
de Deus: "Quanto a mim, bom é
estar junto a Deus; no Senhor Deus ponho o meu refúgio, para proclamar todos os
Seus feitos" (verso 28). O "mal de Asafe" está
sempre presente no ambiente do povo de Deus, buscando a próxima vítima. Se
alguém foi acometido por esse terrível mal, aqui vai o remédio que curou Asafe:
Nunca diga adeus ao Senhor sem antes entrar no Seu santuário e ali derramar
diante dEle a sua dúvida e registrar a sua súplica. Pergunte ao Senhor: "Até quando haverá injustiça, opressão,
fome e guerra? Até quando haverá doença e morte?". Só Deus sabe a
resposta exata, mas Ele não tem o hábito de responder a essa oração do modo
como o fazemos. Ele nos deixa "em suspense", mas também nos assegura
que as rédeas do controle estão continuamente em Suas mãos. Logo o Senhor
deporá Suas vestes sacerdotais, fechará o Seu Templo no Céu, e descerá à Terra
com todos os Seus anjos. Virá por causa dos Seus escolhidos. Se nossa mente
insistir em perguntar, diante da demora da segunda vinda, "Até quando, ó Soberano Senhor, não
julgas a impiedade?", descansemos no fato de que nossa segurança
está na palavra d’Aquele que conhece os tempos e as estações, que sabe o fim
desde o princípio. Ele afirma:
"Vai alta a noite, e vem chegando o dia" (Rom. 13:12).
Tranquilizemo-nos com a certeza de Asafe: "Quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no Senhor Deus ponho o
meu refúgio, para proclamar todos os Seus feitos':
A José Miranda Rocha, doutor em Ministério
Pastoral, é professor de Teologia Aplicada no
UNASP, campus Engenheiro Coelho, SP.
Referências
1.ZygmuntBauman,{rica pós-moderna(São Paulo: Editora paulus,
1997).
2. Ultimato, maio-junho de 2003, pág. 3.
3./bidem, pág. 8.
4. Karina Pastare,"Quando os neurônios morrem", Veja,6
de agosto
de 2003, pág. 73.
5. Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, pág. 459.
6. lee Strobel , &n Defesa da Fé (São Paulo: Ed~oraVida,
2002), págs.
1.30.
7. Ellen G. Wh~e,A Ciênciado Bom Viver, pág. 253.
8./bidem, pág. 250.
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