A fragilidade dos argumentos que minimizam os escritosdo profeta Daniel
por José Carlos Ramos
Teólogo
Temos observado que a
genuinidade do livro de Daniel é incontestável, apesar do empenho da
alta-crítica de se valer das alegadas imprecisões históricas da narrativa para
demonstrar o contrário. Essas imprecisões todavia, são apenas aparentes. A
forma como o livro foi escrito, bem como seus temas teológicos e sua mensagem
profética, não conspiram contra a posição tradicional, que sustenta o 6º século
a.C. como a época da produção de seus manuscritos e atribui ao profeta Daniel
a autoria dos mesmos.
ASPECTOS
LITERÁRIOS
Tem-se alegado que a forma
literária de Daniel indica uma autoria múltipla, e evidencia uma produção
posterior, pelo menos parcial, da obra. Em resultado, a credibilidade do
livro quanto à sua mensagem é fortemente questionada. Como já observamos
em edições anteriores, os críticos sustentam que um judeu anônimo teria escrito
o livro em forma de história e profecia no 2º século a.C. com o objetivo de
fortalecer a resistência judaica à helenização da Judéia imposta pelo rei
sírio Antíoco Epifânio. Agora notamos que a crítica se vale de um outro
argumento para negar ao profeta o papel de escritor: a autoria múltipla.
São evocados os seguintes
pontos a favor dessa hipótese: (1) a estrutura
do livro: a história e a profecia sugerem mais
de um autor; (2) o
padrão da escrita: não há uma uniformidade plena; são inseridos trechos
poéticos num texto prosaico; (3) os fatores lingüísticos: são usados dois
idiomas principais na composição, o hebraico e o aramaico; determinado número
de termos gregos e persas é registrado; e (4) a forma de tratamento: referência a Daniel é feita inicialmente com
o emprego da terceira pessoa, para então ser utilizada a primeira.
Na verdade, nenhum desses
pontos realmente suhstancia o conceito da autoria múltipla e da produção
posterior do livro. Eles tocam diretamente o assunto da unidade do livro de
Daniel que entendemos, não conta com razões conclusivas para ser colocada em
dúvida.
Uma combinação de profecia e
história aparece em outras partes da Bíblia, anteriores à época
tradicionalmente aceita para a produção de Daniel. Um exemplo é o livro do
profeta Isaías. Isso é verdade mesmo que se admita a teoria do trito Isaías, sustentada pela alta-crítica
e segundo a qual 2/3 do livro foram produzidos depois que os judeus regressaram
do cativeiro babilônico. É que o relato histórico registrado nos capítulos
36-39, é considerado pelos críticos como pré-exílico, e proveniente de um
único autor.
O segundo ponto também perde a
sua força quando se nota que um documento tão antigo como o Código de Hamurabi prefacia e conclui
poeticamente um texto em prosa, ou que o livro de Jó introduz e conclui
prosaicamente uma vasta seção poética. Certamente tal fato não pressupõe
autoria múltipla para esses documentos.
Quanto aos fatores
lingüísticos, lembramos que o hebraico de Daniel é similar ao de Ezequiel e dos
livros imediatamente pós-exílicos, ao tempo em que é bem
distinto do hebraico de Eclesiástico, obra
apócrifa do 22 século. Quanto ao aramaico, determinadas construções antes
consideradas tardias em forma e emprego, aparecem nos textos Ugaríticos de Ras
Shamra, tão antigos quanto o tempo da conquista de Canaã pelos hebreus. Isso
demonstra que a avaliação crítica de um idioma por meios meramente subjetivos
pode conduzir a conclusões equivocadas. Estudos mais ou menos recentes, fundamentados
em certos achados arqueológicos, confirmam a opinião de que o aramaico de
Daniel, em linhas gerais, se aproxima daquele empregado em círculos políticos
do 72 século a.C., e que mais tarde “se espalhou pelo Oriente
Médio. As formas lingüísticas estão intimamente relacionadas com a linguagem
dos papiros egípcios de Elefantina [5º e 4º séculos
a.C.], tanto quanto com
as seções próprias do livro de Esdras”. (R. K. Harrison, “Daniel”, The
Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible, vol.
2, pags. 17 e 18).
Alias, vale mencionar que a exemplo de Daniel, Esdras também foi
escrito parcialmente em hebraico e aramaico, e nem por isso lhe é atribuida uma
autoria múltipla, embora não se descarte a presença de um editor. Por que,
então, mais de um escritor teria concorrido para a produção de Daniel?
A mesma conclusão se chega
pelos estudos lingüísticos feitos por Gleason L. Archer Jr., em cinco colunas
de um documento datado do 12 século a.C., conhecido como Génesis Apócrifo e encontrado na caverna 1 em Qumran, sítio do
achado dos famosos rolos do Mar Morto. O
aramaico desse documento difere totalmente do aramaico de Daniel em
ortografia, gramática, sintaxe e vocabulário.A esse respeito, diz Archer: Sumariando, poderia ser dito
que o Gênesis Apócrifo fornece evidência
muito poderosa de que o aramaico de Daniel vem de um período consíderavelmente
anterior ao segundo século a.C”. (“The Aramaic of the
‘Gênesis Apocryphon Compared with the Aramaic of Daniel”, em New Perspectives on the Old Testament, ed.J.
B. Payne,pág. 169).
As palavras persas e gregas no
livro igualmente não provam nada quanto a uma data posterior de produção e à
hipótese da autoria múltipla. As primeiras não surpreendem, já que o próprio
livro avança até o tempo do domínio persa; os termos pertencem à forma mais
antiga do idioma, e não à mais recente. As palavras gregas são mais técnicas,
identificando os instrumentos musicais do capítulo 3. Hoje está comprovado que
a cultura grega havia penetrado no Oriente Médio antes mesmo do domínio persa.
E, covenhamos, nada impede que um determinado escritor se valha de
determinados termos estrangeiros, principalmente se são conhecidos e
comunicam bem o que se deseja transmitir.
Finalmente, a forma de
tratamento variando entre a primeira e terceira pessoas não indica diversidade
de autoria, e é um recurso literário perfeitamente válido tanto para o 6º
século a.C. quanto para antes dele; basta que se note o mesmo emprego no livro
de Jeremias (38:6, etc.) e em textos ainda mais antigos (Provérbios 1:1;
Eclesiastes 1:12; 12:8-10, etc.), obras que em geral são consideradas de
autoria exclusiva.
TEMAS
TEOLÓGICOS
O messianismo,
a angeologia e os temas
do juízo e da ressurreição em Daniel têm sido evocados pelos críticos como uma
evidência da posterior composição do livro. Esses assuntos, segundo eles, aparecem
tão bem elaborados que não podem provir de um escritor do 6º século a.C. Eles
se aproximam mais da forma como as produções pseudo-epi~rafadas e as apócrifas
do período interbíblico se apresentam.
Esse ponto de vista carece
de maior substanciação. O messianismo de Daniel foge ao estilo dos
apocalípticos intertestamentais e se aproxima consideravelmente de outras
obras bíblicas como Isaías e Zacarias, e mesmo Malaquias. A angeologia
evidentemente é mais elaborada do que a dos livros pré-exílicos (referência aos
anjos na Bíblia é feita desde o 3º capítulo de Gênesis), mas é menos do que a das
produções não bíblicas, oríundas dum período posterior. Ela é idêntica à de Ezequiel
e Zacarias, esta última inclusive no fato de anjos explicarem as visões, o que
também ocorre em Daniel. É verdade que Daniel é o único escritor do Velho
Testamento a fornecer alguma identidade angélica, mas isso é feito não com a
excentricidade das obras apócrifas. Apenas um anjo é designado por nome,
Gabriel, e mais um ser glorioso, mencionado como Miguel, que com muita
probabilidade aparece como príncipe do exército do Senhor em Josué 5:13-15, livro bíblico bem anterior a
Daniel. Em contrapartida, o livro de Enoque, oriundo do 2º século a.C., menciona
o nome de 19 anjos caídos, quatro anjos fiéis e sete arcanjos.
O tema da ressurreição aparece
em Jó, Isaías, Ezequiel e nos Salmos, enquanto o do juízo é visto em Isaías,
Ezequiel e nos profetas menores, Nesse ponto, o livro de Daniel se destaca dos
apocalípticos posteriores, os quais estabelecem uma “passividade ética” na
obra divina do julgamento imediato. Em Daniel, todavia, Deus preside os
negócios do mundo, pois Ele é visto como o Altíssimo Soberano dos reis da
Terra, Por isso, Seus juízos não esperam apenas pelo dia final do ajuste, como
é o enfoque desses apocalíticos, mas podem operar em qualquer tempo, incluindo
o do próprio profeta. E essa é a visão geral da Bíblia sobre o assunto, em que
pese o fato de o “juízo final” ter a sua importância.
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