A natureza humana
de Jesus
Cristo morreu como nosso sacrifício e viveu como nosso exemplo
A natureza da humanidade de Cristo é um dos assuntos mais debatidos entre
os adventistas do sétimo dia. Era Ele semelhante a Adão antes ou depois da
Queda? Para responder a esta pergunta, entrevistamos o Pastor Amin A. Rodor,
doutor em Teologia Sistemática.
Formado em teologia no antigo IAE, São Paulo, o Pastor
Rodor iniciou seu ministério em 1970, na União Este-Brasileira, onde atuou como
distrital e diretor IA. Após seus estudos de mestrado em divindade e doutorado
por um período de oito anos na Andrews University (EUA), atuou como professor
de teologia no ENA, IAENE e no programa de mestrado da Divisão Sul-Americana
(DSA). Serviu ainda, por dez anos, como pastor nos Estados Unidos e Canadá.
Atualmente, além de professor de teologia, é o diretor do SALT Campus IL em
Engenheiro Coelho, SP. Casado com a enfermeira Rita, tem três filhos: Dianne,
Luccas e Michel.
Esta entrevista, concedida a Rubens Lessa, tem o objetivo de ajudar na
compreensão do livro Ellen White e a Humanidade de Cristo, lançado
recentemente pela Casa.
Revista Adventista:
Basicamente, em que consiste a posição pós-queda
(pós-lapsariana) em relação à natureza humana de Jesus?
Dr. Amin Rodor: Pós-lapsariana significa depois do lapso, depois da queda, da entrada do
pecado, registrada em Gênesis 3. Fundamentalmente os defensores da teoria pós-lapsariana insistem que, na
encarnação, Jesus assumiu a natureza humana, tanto física como moral e espiritual, com todas as características
da humanidade caída. Assim, nesta
formulação, Jesus, em termos de forma e
essência, foi exatamente como
qualquer um de nós — cem por cento igual. Absolutamente
em nada diferente de qualquer outra criatura nascida no planeta Terra. A. T.
Jones, um dos pioneiros desta noção, escreveu: “Em Sua natureza humana, não há
uma partícula de diferença entre Ele [Jesus] e vós.” (General Conference Bulletin, 1895, págs. 231, 233, 436, citado em G. Knight, From 1888 to Apostasy, pág. 136.)
Aqui, contudo, temos que parar para
refletir. A Bíblia trata a condição natural do homem sob o pecado em termos
nada elogiosos (ver Jer. 17:9; Sal. 51:5; Rom. 7:14). Para Ellen White, depois
da queda, “No seu âmago, a natureza humana foi corrompida. Desde então, o
pecado alcançou todas as mentes” (Review
and Herald, 16/04/1901).
“Com relação ao primeiro Adão, os homens nada receberam
dele senão a culpa e a sentença de morte” (Orientação
da Criança, pág. 475). Ainda, segundo Ellen White, o egoísmo, profundamente
arraigado em nosso ser, “nos veio por herança” (Historical Sketches, págs. 138 e139). Embora Jesus não fosse um
pecador, como corretamente entendido pelo pós-lapsarianismo, teria Ele sido,
realmente, participante da natureza humana corrompida, com tendências,
propensões para o pecado e inclinada para o mal?
RA: Os defensores dessa idéia dizem que, uma vez
que Jesus foi vitorioso tendo uma natureza como a nossa, também nós podemos ter
vitória perfeita sobre o pecado. Quais as implicações disso?
Dr. Amin Rodor: Uma das conseqüências mais graves,
embora isto nem sempre seja percebido ou admitido, é que
Cristo deixa de ser primariamente
o nosso divino substituto, para
Se tornar o nosso modelo de
perfeição. Daí para um retorno à confusão entre justificação e santificação, é
apenas um passo. Outro desdobramento direto é o perfeccionismo. O raciocínio é
precisamente este: “Jesus foi como nós, nós podemos e devemos ser como Ele.”
Ainda nesta conexão, como afirmado por M. L. Andreasen e outros defensores do
pós-lapsarianismo, enquanto a igreja não aceitar esta mensagem e alcançar um estágio de absoluta perfeição, sua
missão não será cumprida e Cristo não virá. Para Andreasen, o segundo advento
ainda não ocorreu porque a igreja remanescente tem falhado em alcançar um
estágio de absoluta ausência de pecado (M. L. Andreasen, The Book of Hebrews, págs. 466 e 467).
O potencial
de confusão aqui é enorme e os resultados negativos de tal teoria na
consciência cristã são inevitáveis: complexo de superioridade espiritual,
espírito acusador e mentalidade dada à dissensão na igreja surgirão
fatalmente. Sem qualquer dúvida, a santificação é um ideal bíblico para os
discípulos de Cristo (Heb.12:4), mas devemos entender o significado bíblico de
santificação e perfeição. Para Ellen White, “Nós nunca poderemos igualar o
Modelo...” (Review and Herald, 5/02/1895,
pág. 81); e ainda, em análise final, “ninguém é perfeito como Jesus” (Manuscrito 24, 1892, citado em G.
Knight, em The Pharisee’iç Cuide to
Perfect Holiness, pág. 174). Segundo Ellen White, aqueles que realmente
estão no caminho da santificação, serão os últimos a alardearem isso (Santificação, págs. 7-11). E isto precisamente
porque cada vez que nos aproximamos, o ideal se reprojeta para mais distante.
RA: A posição pós-queda
tem alguma base bíblica? E o que diz o Espírito de Profecia?
Dr. Amin Rodor: Sem dúvida, a ênfase na humanidade
de Cristo é ensino bíblico. Contudo, a Bíblia indica ao mesmo tempo que Ele
foi radicalmente diferente de todos os outros homens. Seu nascimento
virginal, Sua vida de absoluta “ausência de pecado” e Sua ressurreição
vitoriosa deveriam servir-nos de alerta de que em Cristo estamos diante de
Alguém exclusivo, único, em todo o reino da humanidade. Ele é o monogenes de Deus, isto é, o único do
Seu tipo.
Textos como Hebreus 2:17, Romanos
8:3 e Filipenses 2:7 indicam que, na encarnação, Cristo veio em “semelhança da carne do pecado”~
Contudo, devemos ter em mente que a palavra “semelhante”,
nesses textos, foi cuidadosamente escolhida, para indicar exatamente isto — “semelhança,” não absoluta igualdade. Além desses,
outros textos sobre este assunto são de clareza incontestável. Por exemplo,
Hebreus 7:26: “Nos convinha tal sumo sacerdote, santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores”.
O que é dito aqui não é apenas que
Jesus não cometeu atos pecaminosos (os sintomas do pecado), mas que Ele veio em
condição de absoluta “ausência de pecado” em
Sua natureza essêncial. Em João 8:46, Jesus afirma:
“Quem dentre vós Me convence de pecado?” 1 João 3:5
acrescenta: “NEle não há pecado.” Devemos neste ponto rejeitar qualquer noção
superficial de pecado. Para Jesus, pecado mais que o ato, é uma condição, um
estado, uma inclinação da natureza humana para o mal (Mat. 5:21 e 22; 15:19),
da qual
Ele não partilhou. Ao afirmar que ninguém pode
convencê-Lo de pecado, isto, portanto, deve ser entendido à luz de Sua própria
definição de pecado. Em João 14:30, Jesus faz para Si uma reivindicação
absoluta: “Porque se aproxima o príncipe deste mundo e nada tem em Mim.” De
qual dos homens isto poderia ser dito?
Ellen White concorre com a mesma
ênfase bíblica em relação à natureza incontaminada de Cristo. As citações são
inúmeras, mas basta-nos mencionar apenas alguns textos de clareza absoluta:
“Ele.., é um irmão em nossas fraquezas, mas
não em possuir idênticas paixões” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 2, pág.
202). Quando confrontado com esta citação, na Assembléia da Associação Geral de
1895, A. T. Jones procurou esquivar-se tentando estabelecer uma diferença entre
a carne de Cristo e Sua mente. De acordo com Jones, Jesus “foi feito semelhante
à carne pecaminosa; não em semelhança de
mente pecaminosa... Sua carne foi como a nossa carne, mas a mente foi a
mente de Cristo Jesus” (General
Conference Bulletin, 1895, págs. 312 e 327; veja G. Knight, em From 1888 to Apostasy, pág. 138). A
questão aqui é muito simples: como afirmar então que Cristo era absolutamente
como nós, “sem uma partícula de
diferença”, e ao mesmo tempo dizer que a Sua mente era diferente da nossa?
Não é a nossa mente parte de nossa natureza pecaminosa, e precisamente o
campo onde se trava a batalha contra o pecado? Além da incrível semelhança com
o nestorianismo (heresia cristológica do quinto século, segundo a qual a
Palavra tomou o lugar da mente, em Jesus Cristo), tal posição não faz qualquer
sentido teológico e destrói todo o discurso de que Cristo é cem por cento como
nós.
Ainda da voz profética aos adventistas
lemos que Cristo “deveria assumir a posição como cabeça da humanidade, por tomar a natureza mas não a
pecaminosidade do homem” (SDABC, Ellen G. White Comments, vol. 7, pág. 925). E, provavelmente, a mais
famosa de todas as citações de Ellen White, conhecida por qualquer estudante
da cristologia: “Sede cuidadosos, extremamente cuidadosos, quando tratais com o
tema da natureza humana de Cristo; não O
representeis perante as pessoas como um homem com propensões para o pecado.”
(SDABC, vol. 5. pág. 1.113). Ainda no mesmo contexto, ela adverte: “... Nunca, de forma
alguma, deixeis a mais leve impressão sobre as mentes humanas de que a mancha
ou a inclinação para a corrupção permaneceram sobre Cristo, ou que Ele de algum
modo tenha cedido à corrupção” (Ibidem, págs. 1.128 e 1.129).
RA: O que enfatizam os
defensores da posição pré-queda (pré-lapsariana)?
Dr. Amin Rodor: A posição pré-queda afirma que,
enquanto seja claro que Jesus partilhou uma íntima afinidade conosco, as
evidências bíblicas também indicam que Ele foi, ao mesmo tempo, radicalmente
diferente de nós. Assim, por um lado, Ele sujeitou-Se às leis da
hereditariedade, encarnando as “fraquezas inocentes” desta condição:
Ele sentiu fome, sede, ficou cansado, frustrado e às
vezes, deprimido e triste. Tomou todas as limitações físicas dos descendentes
de Adão. Por outro lado, em Sua natureza moral e espiritual, era como Adão
antes da queda. Absolutamente puro, incontaminado de qualquer mancha. Do ponto
de vista moral, Ele Se ergue como o nosso perfeito substituto. Sobre Sua
encarnação miraculosa, Gabriel informa à virgem: “Descerá sobre ti o Espírito
Santo. ... Por isso, também o ente santo que
há de nascer será chamado Filho de Deus” (Luc. 1:35).
Em nossa natureza existe uma afinidade
natural com o pecado. Comentando a profecia da inimizade entre a mulher, sua
descendência e o seu descendente (Gên. 3:15), Ellen White enfatiza que, em nós,
esta inimizade não é natural, de
fato: “Não existe, por natureza, nenhuma inimizade entre o homem pecador e o
originador do pecado” (O Grande Conflito,
pág. 505). Em relação a Jesus, contudo, Ellen White declara: “Com Cristo a
inimizade era em certo sentido natural; em outro sentido foi sobrenatural,
visto combinarem-se [nEle] humanidade e divindade. E nunca se desenvolveu a
inimizade a ponto tão notável como
quando Cristo Se tornou habitante da Terra” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág.
254). Portanto, “Não devemos ter dúvidas acerca da perfeita ausência de pecado
na natureza humana de Cristo” (Ibidem, vol.
1, pág. 256).
RA: Poderia citar mais
um argumento em favor dessa interpretação?
Dr. Amín Rodor: Outro forte argumento derivado do
princípio de interpretação bíblica, conhecido como “analogia da fé”, consiste
no fato de que as Escrituras não podem contradizer-se. Poderíamos, à luz do
ensino bíblico quanto à nossa necessidade de um Salvador absolutamente
incontaminado pelo pecado, insistir que Cristo possuiu uma natureza
desorganizada e corrupta, sob a depravação do pecado? Poderíamos defender que
Sua natureza moral foi imersa no egoísmo que infectou toda a raça humana?
Egoísmo “entretecido em nosso ser e que “nos veio por herança” (Ellen White, Historical Sketches, págs. 138 e 139)?
Poderia Jesus Cristo ser realmente como nós em Sua natureza moral, e ainda
assim estar qualificado para ser o nosso advogado, intercessor e substituto?
RA: Cristo foi
“infectado” ou “afetado” pelo pecado?
Dr. Amin Rodor: De fato, afetado, mas não faria qualquer sentido exigir que Ele tivesse sido
ao mesmo tempo infectado pela doença
sistêmica do pecado, que nos envolve a todos, e que é precisamente a base da
nossa necessidade de redenção.
Muitos crêem que Jesus tinha que ser
exatamente como nós, ter as mesmas propensões pecaminosas inerentes, para
poder nos ajudar. É procedente esse tipo de raciocínio? Em última análise, esta
é uma outra má compreensão. Em primeiro lugar, porque era impossível Jesus suportar cada tentação que sobrevém aos diferentes
tipos de pessoas. Se Ele, por exemplo, era homem, solteiro e pobre, como
poderia “ser tocado pelos sentimentos” das
mulheres, dos casados e dos ricos? Uma pessoa não é tentada em termos daquilo
que ela não é. Em segundo lugar, além de impossível, seria inútil
que Jesus experimentasse cada tentação que cada pessoa
enfrenta. A tentação tem significado apenas quando ela é adequada a uma pessoa
em particular. O diabo tentou Jesus com apelos que se constituíram em tentação
para Ele. O uso da Sua divindade em beneficio próprio, por exemplo.
Finalmente, além de impossível e inútil, seria desnecessário para Jesus lutar com cada tentação que sobrevém a
cada pessoa. Cristo necessitou apenas vencer onde Adão falhou, sem necessitar
ter as propensões para o pecado. A acusação de Satanás não era que seres
pecaminosos não poderiam guardar a lei de Deus, mas que Adão, antes da queda,
não podia fazê-lo. Jesus desfez o engano, assumindo a humanidade, não como
qualquer descendente de Adão, mas como o segundo Adão (Rom. 5:12-2 1; 1 Cor.
15:45-47), ainda que, do ponto de vista fisico, em condição de extrema
desvantagem.
Então, onde está a identificação de
Cristo conosco, em nossas tentações? Em Sua vitória sobre a essência do pecado!
Em sua base, toda tentação tem um elemento comum: levar-nos a viver de forma
independente de Deus; levar-nos a romper com a lealdade a Ele, por prazer,
honra, posição ou vantagem. Jesus venceu a causa básica do pecado, afirmando
Sua completa dependência de Deus e Sua lealdade absoluta a Ele. Aí Ele esmagou
a
cabeça da serpente, e em Sua vitória está assegurada a nossa vitória.
RA: Jesus, portanto,
estava plenamente qualificado para ser a nossa oferta.
Dr. Amín Rodor: Como poderia Jesus ser realmente
nosso substituto, a oferta vicária pelo pecado, se Ele fosse exatamente como
nós, em Sua natureza moral e espiritual? Neste caso, Ele próprio estaria em
necessidade de um redentor, e assim não passaria no teste de qualificação para
ser a nossa oferta. No antigo santuário, uma das exigências cruciais para as
ofertas que tipificavam o Redentor futuro era que “Nenhuma coisa em que haja
defeito oferecereis, porque não seria aceita a vosso favor” (Lev. 22:20). Não
é de surpreender, portanto, que para Ellen White, “o homem não pode fazer
expiação pelo homem”, uma vez que sua condição caída constituiria uma oferta
imperfeita” (Review and Herald, 17/12/1872,
citado por W. Whidden, Ellen White e a
Humanidade de Cristo, pág. 38). Assim, ela afirma: “Por um lado, Cristo é
um representante perfeito de Deus; por outro, Ele é um espécime perfeito da
humanidade sem pecado” (SDABC, vol.
7, pág. 907). A conclusão lógica é inevitável e reveladora: “Ele não necessitou
de expiação” (Review and Herald, 09/21/1886).
Foi o nosso perfeito, imaculado, puro e todo-suficiente Redentor!
“O desenvolvimento da compreensão de Ellen White acerca
da natureza de Cristo estava intimamente ligado com sua visão acerca da
salvação. Com efeito, para compreender seus ensinos sobre salvação, é
absolutamente necessário que sua cristologia seja levada em conta. Isto é
especialmente crucial quando diz respeito à maneira pela qual entendia a
relação entre a natureza humana de Cristo e a perfeição cristã.” — Woodrow W.
Whidden, Ellen White e a Humanidade de
Cristo, pág. 13.
Revista Adventista, abril 2004
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