A reimaginação de Deus
Estudiosos
tentam entender como Deus Se relaciona com o mundo e o futuro
O
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Marcos De Benedicto
S teólogos evangélicos norte-americanos e canadenses parecem
ter descoberto um novo tópico para estudo, debate e especulação. Trata-se do
conceito da “abertura” de Deus. Ou seja, eles querem descobrir até que grau
Deus conhece antecipadamente nossas decisões e determina o futuro.
Esse foi um dos temas principais do
último encontro anual da Sociedade Teológica Evangélica, realizado em novembro,
nos Estados Unidos. No total, cerca de 40 apresentações relacionadas com o
assunto foram agendadas. Além disso, vários livros defendendo pontos de vista
opostos já foram ou serão lançados em breve. As teses acadêmicas também estão
se multiplicando.
Na verdade, esse debate não é muito novo. Começou na
década de 1980, quando o teólogo adventista Richard Ríce publicou um livro
intitulado The Openness of God (A abertura de Deus). O livro logo
saiu do catálogo da Review and Herald por uma decisão da liderança adventista
(no ano seguinte, foi reimpresso pela Bethany House), mas antes disso um
exemplar chegou às mãos do influente teólogo batista Clark Pinnock, professor
no McMaster Divinity College em Hamilton, Canadá. Pinnock escreveu para Rice,
iniciando um diálogo, e em 1994 editou um livro com o mesmo titulo, escrito por
ele e outros quatro teólogos, incluindo Rice.
Se pensarmos em termos históricos, sempre houve certa
tensão em áreas teológicas afins. No 5o. século, os seguidores de
Santo Agostinho (354-430) enfatizavam a soberania divina, ao passo que os
simpatizantes de Pelágio (c. 354-após 418) ressaltavam o potencial humano. No
século 16, os seguidores de João Calvino (1509-1564) ensinavam que Deus tem um
controle absoluto sobre tudo o que acontece no mundo, enquanto os discípulos de
Jacobus Arminius (1560-1609) destacavam o papel do livre-arbítrio, da vontade e
da responsabilidade do ser humano.
O que há de novo é o interesse em
torno do assunto. Confirmando essa onda, em sua edição de 21 de maio de 2001, a
revista Christianity Today, um dos periódicos mais populares no
meio evangélico norte-americano, anunciou em matéria de capa: “An Openness
Debate”. O debate, entre Christopher A. Hall e John Sanders, no estilo troca
educada de e-mails, continuou na edição seguinte e deve virar livro (numa
versão ampliada). As perguntas impressas na capa da revista e na introdução da
matéria resumem bem a essência da discussão em andamento:
Deus muda a Sua mente?
Ele muda Seus planos em resposta a
nossas orações?
Deus conhece nosso próximo
movimento?
Se Deus conhece tudo, somos
realmente livres?
Deus conhece o futuro com exatidão,
ou apenas com alto grau de probabilidade?
Deus estava assumindo um risco ao
criar a humanidade?
O que (e quando/quanto) Deus conhece?
Se Ele não conhece o futuro em
detalhes, como devemos encarar as profecias bíblicas?
Implicações – Essas perguntas têm implicações
diretas no dia-a-dia dos crentes, pois o quadro mental que temos de Deus afeta
nosso relacionamento com Ele e o mundo. Em especial, o conceito sobre Deus
influi na maneira de percebermos as tragédias que se abatem sobre nós.
Mas em que a teologia da “abertura
de Deus” difere da visão tradicional? Em síntese, explica Richard Rice, os defensores
do modelo aberto acreditam que Deus interage com o mundo. “Eles creem que Deus
não somente influência o mundo, mas também é influenciado pelo mundo.” Deus é sensível a Suas criaturas. Em Seu
amor, Deus criou seres realmente livres, cujas escolhas Ele leva a sério. Por
isso, Deus dirige o mundo para um propósito, mas não força ninguém. Ele
partilha das alegrias e tristezas de Suas criaturas.
Uma das implicações dessa visão tem
a ver com a relação entre Deus e o tempo. E aqui que as divergências realmente
começam. Grandes pensadores cristãos do passado, como Irineu e Tertuliano, no
2º século, e C. S. Lewis, no século 20, ensinaram que Deus não está limitado
pelo fluxo do tempo. De um relance, Ele vê tudo; portanto, conhece
detalhadamente todas as coisas. Para Deus, o passado, o presente e o futuro
seriam um eterno agora. Mas a nova geração de teólogos da “abertura” desafia
esse pressuposto, afirmando que o tempo é real para Deus. Ao invés de ver tudo
de uma vez, Deus experimentaria os fatos à medida que eles ocorrem. Deus é
eterno, mas não atemporal.
Evidentemente, os defensores do
modelo aberto também crêem que Deus tem um conhecimento perfeito.
Mas esse conhecimento, para eles, é, perfeito porque Deus (1) conhece as coisas
exatamente como elas são, (2) é o maior especialista no cálculo de probabilidade
e (3) tem poder para concretizar Seus planos. O conhecimento divino não seria
perfeito no sentido de Deus ler antecipadamente os pensamentos das pessoas, ou
contemplar “lá de cima” as coisas que
ainda não aconteceram. A decisão de um ser livre, argumentam, só pode ser conhecida quando a
decisão é tomada. Antes disso, a decisão não existe e não há nada para saber
sobre aquela decisão. Ou seja, a questão não é se Deus conhece perfeitamente a
realidade, mas que realidade Ele conhece perfeitamente.
Uma vantagem dessa abordagem,
segundo os seus adeptos, é que ela evita o tradicional malabarismo filosófico
para conciliar a onisciência divina com o livre-arbítrio humano. Se Deus
conhece tudo o que eu vou fazer, onde está a minha liberdade? Em geral, os
teólogos respondem que o fato de Deus conhecer algo não significa que Ele
determina aquela coisa. Mas essa resposta não convence a todos.
Outra aparente vantagem é que a
teoria explica melhor o caráter amoroso de Deus. Se Deus controla tudo, o que
dizer das tragédias e catástrofes existentes no mundo? O holocausto judeu na
Segunda Guerra Mundial (ou o atentado ao World Trade Center, ou mesmo a morte
de uma pessoa querida) não combina com um Deus de amor, a menos que esse Deus realmente
respeite a liberdade do ser humano. No modelo aberto Deus não determina ou
controla todos os detalhes da história. Há coisas que Ele decide sozinho,há
outras em que cooperamos com Ele, e há ainda outras coisas que acorrem contra a
Sua vontade.
Além disso, o modelo de Rice,
Pinnock & Cia. parece explicar melhor várias passagens bíblicas sugerindo
que o futuro é parcialmente aberto. A Bíblia indica que (1) Deus muda de idéia
quando as circunstâncias mudam, (2) tem expectativas sobre o comportamento humano que às vezes não são
correspondidas, (3) fica decepcionado e
Se arrepende de certas decisões, (4) investiga os fatos antes de enviar juízos,
(5) testa a fidelidade das pessoas e (6) interfere no curso das coisas em
resposta à oração (veja o quadro “Paradoxo”).
Se Deus determinasse tudo e tivesse
um conhecimento antecipado absoluto das decisões humanas, alegam os defensores
da “nova” teoria, o futuro seria fechado. Nesse caso, por que Ele precisaria
investigar, mudar de idéia ou testar? Para eles, esse tipo de linguagem não é
apenas antropomorfismo (atribuição de formas ou características humanas a
Deus), mas a descrição real dos fatos.
De forma bem direta, o modelo aberto
afeta a maneira de encarar a oração. Há quem pense que a oração não muda a Deus,
mas somente a pessoa que ora, refinando sua visão e acentuando seu compromisso.
Mas, do ponto de vista bíblico, a realidade parece não ser bem essa. Se a
oração não despertasse uma resposta de Deus, então não teria sentido orar pelos
outros. A Bíblia sugere que a oração realmente tem o poder de mudar as coisas.
Finalmente, embora sem esgotar o
assunto, o modelo aberto dá um novo sentido para a morte de
Cristo. Se Deus pré determinasse tudo, então a vinda de Cristo seria apenas um jogo de cena. Ou seja, a Sua
vitória já estaria garantida por antecipação. Porém, as tentações de Cristo e
a Sua oração para o Pai livrá-Lo da cruz, se possível, mostram que a Sua missão
envolvia um risco real. Deus não joga
dados, mas, por amor, corre riscos.
Críticas
— Como era de se prever, o modelo
aberto tem despertado pesadas críticas, especialmente de teólogos influenciados
pela filosofia platônica e o calvinismo. Uma das críticas é que a visão aberta diminui a
soberania e rouba a majestade de Deus. Em uma entrevista à Christianity Today, Royce Gruenler acusa os adeptos do modelo aberto de limitar Deus a uma
porcentagem de poder. Se nós controlamos 70% e Deus só controla 30%, sugere
Gruenler, esse Deus não seria digno de adoração. Rice discorda. “O problema não
é quanto poder Deus possui”, escreveu recentemente na revista Spectrum, mas
como Deus escolhe usar o Seu poder.”
Outra crítica freqüente é que o modelo aberto
nega a onisciência de Deus. Os teólogos tradicionais crêem que o conhecimento
de Deus não tem limite, nem qualificação. É absoluto. Um Deus meio “ignorante” não seria sem valor diante de um mundo
em acelerado ritmo de mudanças? Rice diz que é um erro grosseiro dizer que os
defensores do modelo aberto negam
a
presciência de Deus. Para John Sanders, autor de The God Who Rishs (O Deus que arrisca), Deus conhece
totalmente o passado, o presente e aquilo que está definido (ou fechado) do
futuro; só não conhece o que está indefinido (ou aberto). Ele sabe tudo o que é
possível saber. O futuro não poderia ser totalmente conhecido porque ainda não
existe.
E o que dizer das profecias? Norman
R. Gulley, teólogo adventista, afirma que o conhecimento absoluto prévio de
Deus é essencial no contexto profético. Se
o futuro é desconhecido, diz ele, então não podemos ter segurança quanto ao
programa divino, nem senso de urgência. Um dos textos mais utilizados pelos
críticos do modelo aberto é Isaías 46:9 e 10, onde Deus Se apresenta como aquele que anuncia o fim desde o
princípio e que revela as coisas ainda por acontecer. Mas, novamente, Rice
contra-argumenta, dizendo que os versos seguintes apontam para o poder de Deus.
Isso significa que, nesse texto, Deus está falando de Seu plano, anunciando o
que pretende fazer, e não de Seu absoluto conhecimento do futuro.
A glória divina não estaria apenas no que Deus conhece,
mas no poder que tem para realizar Seus planos.
Há também os que associam o modelo aberto com a chamada
teologia do processo, a qual, na prática, torna Deus dependente do mundo e
profundamente influenciável pelas experiências dos seres criados. Os defensores
do modelo aberto negam essa ligação. “Deus é imutável em alguns aspectos e
mutável em outros”, comenta Rice. “Deus muda à medida que Se interage com o
mundo, mas em Sua existência e caráter é tão absoluto quanto qualquer
tradicional gostaria que fosse”.
Consenso? — Que o modelo aberto representa uma significativa
mudança na maneira tradicional de imaginar Deus, é evidente. Por isso mesmo merece atenção. Mas seria ele bíblico? Na disputa
anterior entre calvinistas e arminianos, os últimos parecem ter levado a
melhor. A idéia da predestinação perdeu espaço para o conceito do
livre-arbítrio. Para muitos, um meio-termo foi satisfatoriamente encontrado:
Deus predestina todos para a salvação, mas a salvação só é efetiva se a pessoa
disser “sim” à oferta divina. Será que ocorrerá algo parecido no debate atual?
Não dá para prever se algum dia os teólogos
evangélicos chegarão a um consenso sobre
o assunto, mesmo porque o modelo aberto pode levar a conclusões um tanto
radicais. Mas o dialogo deve prosseguir. A verdade não teme a força dos
argumentos. Se o modelo aberto passar no teste da legitimidade bíblica, deve
ser aperfeiçoado; se não passar, deve ser descartado.
O mínimo que se espera é que o diálogo continue num clima
cordial e que o que os teólogos não
sejam punidos por suas igrejas por ousar
pensar. Em matéria de teologia, como em outras áreas, é preciso manter a mente
aberta, um espírito amistoso e o bom senso. Rotular uma teoria de “heresia” só
porque ela não corresponde à tradição não leva a nada.
Sempre é possível ampliar o conhecimento bíblico e
refinar a teologia. Afinal, ninguém é dono absoluto da verdade. Sem falar que
já existe muita coisa em comum entre esses diferentes teólogos, a começar pela
crença na Bíblia como a Palavra de Deus e em Jesus Cristo como o Salvador.
Se é
hora de questionar o modelo aberto, ainda é cedo para aceitá-lo ou descartá-lo.
A única coisa certa, enquanto, é que o Deus infinito pode ser totalmente
compreendido pelo ser humano finito.
PARADOXO
A Bíblia tem vários
aparentes paradoxos. Com relação à soberania/onisciência divina, isso não é diferente.
Um grupo de passagens sugere que Deus conhece tudo, tem
um plano estrito para o cosmos e não muda. No Salmo 139, Davi diz que Deus
conhecia os seus pensamentos de longe e que seus dias foram escritos no livro
divino antes dele nascer (versos 2 e 16). A narrativa sobre a traição de Jesus por Judas sugere um perfeito conhecimento prévio dos
fatos (Mat. 26t23-25; 27:5-l0). O
apóstolo Paulo diz que “tudo é feito de acordo com o plano e a decisão
de Deus» (Efés. 1:11, BLH). Em certo sentido, Deus não muda (Mal. 3:6; Tiago 1:17). Embora os defensores da “abertura de Deus» tenham explicações para esses textos, eles são fortes evidências contra o seu modelo.
Já outro grupo de passagens sugere que Deus altera
os planos, muda de idéia e até mesmo aperfeiçoa Seus conhecimentos. Deus
celebrou a criação do mundo, mas, vendo a maldade humana, arrependeu-Se de ter
criado a humanidade (Gên. 6:6). Antes de
destruir Sodoma e Gomorra Deus checou
se a situação era realmente tão grave
(Gên. 18:21). Ele testou Abraão
e os israelitas para constatar a fidelidade deles (Gên. 22:12; Êxo. 20:20). Certa vez, enviou o profeta Jonas a Nínive, capital da Assíria, com o aviso
de que iria destruir a cidade. Mas
o povo se arrependeu e Deus mudou de
idéia, para a decepção do profeta (Jonas 3:1O). Parece que Deus não vê nenhum problema em usar as palavras “pode
ser” e “talvez” (Exo. 4:8 e 9; Jer.
26:3; Eze. 12:3). O plano de Deus pode ser rejeitado e
a apostasia é possível (Luc. 7:30; João 15; Rom.
11:22; Heb. 6:4-6; 10:26-29; Apoc. 3).
Solução
do paradoxo? Deus
é soberano e perfeito, mas isso não
significa que Seus planos sejam
Inateráveis, ou seguidos nos mínimos
detalhes, pois Ele respeita o nosso livre arbítrio. Jeremías explica o princípio da condicionalidade de modo
claro: “Deus é tão soberano que tem liberdade para anunciar uma
bênção ou um juízo e,
dependendo da resposta do povo mudar de idéia” (Jer. 18:7-10). Naturalmente, há certos planos divinos, como
a volta de Cristo, que são incondicionais.
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