Sondando
a passagem
mais
conhecida
Palavras que nos ajudam a viver em comunhão
com Deus
por José Carlos Ramos
Qual a passagem bíblica mais conhecida? Ao contrário do que inicialmente
se poderia imaginar, não é o Salmo 23 ou João 3:16. Essa passagem é tão conhecida
que muitos dos que nem mesmo lêem a Bíblia, ou a lêem muito pouco, proferem-na
de memória. Enquanto que em quase toda a Bíblia Deus é quem fala a nós, na
passagem mais conhecida somos nós que falamos a Ele. Em outras palavras, ela é
urna oração.
Que passagem é essa? Se você pensou no “Pai Nosso”, acertou. Ele aparece em
duas versões, a de Mateus 6:9-13 e a de Lucas 11:2-4. Estamos familiarizados
com a primeira, provavelmente mais original no conteúdo, enquanto a segunda,
em sua versão reduzida, parece ser mais original ao contexto histórico.
Meditemos um pouco nessa oração.
Oração escatológica — Estudiosos do evangelho geralmente
reconhecem o “Pai Nosso” como oração modelo para o tempo final. Uma oração
escatológica não apenas por seu conteúdo, mas especialmente por ter sido ensinada
por Aquele com quem os últimos dias chegaram.
Segundo Lucas, Jesus ensinou o “Pai Nosso” em atenção ao pedido de um
discípulo. “Ensina-nos a orar como também João ensinou aos seus discípulos” (11:1). Sabemos que pelo menos alguns (senão a
maioria) dos discípulos de Jesus eram ex-discípulos de João Batista, e é
possível que aquele que Lhe fez o pedido fosse um deles, já que, ao pedir,
mencionou o precursor e o fato de ter ensinado seus seguidores a orar. Nesse
caso, o pedido se reveste de um significado especial. O discípulo havia sido
ensinado por seu antigo mestre, mas agora, seguindo a Jesus, ele descobriu que
a forma de orar ensinada por João não se adequava plenamente à realidade
messiânica introduzida por Cristo.
João, na verdade, foi o último dos profetas da antiga dispensa ção, aquele
que apresentou o Messias a Israel, e por isso mesmo o maior de “entre os
nascidos de mulher”; Cristo declarou, todavia, que o menor membro da comunidade
messiânica era maior do que João (Mat. 11:11). Só o Messias poderia ensinar o
modelo de oração apropriado para o tipo de pessoas que os discípulos eram e
para a qualidade de tempo em que viviam. Esse modelo é precisamente o
“Pai Nosso”
Estrutura e conteúdo — A oração, como a usamos, pode ser
dividida em três partes principais: (1) uma invocação,
com três súplicas orientadas pelo pronome “tu” e possessivos correspondentes,
diretamente direcionadas a Deus e relacionadas com Ele, e que assim, nao
somente O colocam em primeiro plano, mas revelam, da parte de quem ora, o
empenho por Sua honra e reivindicação; (2) urna seção peticionária, contendo quatro súplicas orientadas pelo
pronome nos e possessivos correspondentes, através das quais aquele que ora
revela sua total dependência de Deus para a satisfação de suas necessidades
materiais e espirituais; e (3) a doxologia
final, na qual Deus é glorificado por Seu caráter e magnificência. Essa
doxologia étida como não original. Ë verdade que os melhores manuscritos do Novo Testamento não a trazem, mas
sua tradição é antiga, remontando ao tempo da produção do Didaché, um tratado cristão anônimo do princípio do II século. Essa
obra registra a doxologia que, possivelmente, tenha 1 Crônicas 29:11 corno
pano de fundo. Além do mais, ela é condizente com a ênfase teológica de Mateus.
“Pai” corresponde ao aramaico abba, a
forma delicada e afetiva de se referir ao genitor (mais ou menos como o
português papai). Aplicada a Deus,
fala-nos de Seu amor e desvelo. Desde as páginas do Velho Testamento Deus é
considerado o Pai de Seu povo (Isa. 63:16; 64:8; Jer. 3:4; cf Fxo. 4:22), mas é
o ensino de Jesus que define o caráter paternal de Deus com todas as suas
implicações.
O “Pai Nosso evoca a singularidade da
filiação divina de Jesus, no fato de que esta oração é exclusivarnente para
os discípu]os e nunca para o Mestre; Ele é Filho de Deus num sentido em que
ninguém o é. De fato, Ele Se dirigiu a Deus utilizando a forma absoluta “Pai’~
e ao anunciar Sua ascensão, declarou que subiria “para Meu Pai e vosso Pai”
(João 20:17), distinto de “para nosso Pai”, que implica filiação comum.
Nossa filiação divina, entretanto, só é possível através dEle (João 1:12). A Igreja é filha de Deus porque é uma com
Cristo. Seus seguidores formam a comunidade messiânica, a comunidade dos filhos
de Deus. Dai as palavras de abertura, Pai nosso, que lembram o fato de
pertencermos a uma grande família e sermos todos irmãos (Mat. 23:8 e 9).
“Que estás no Céu”. Mais que a residência de Deus, “Céu” indica o Seu
domicílio, a sede do Seu governo,
o local de onde Ele
opera, cumprindo o Seu propósito.
“Santificado seja o Teu nome”. O nome de Deus é uma figuração do Seu
caráter que tem sido viLipendiado desde o surgimento de Satanás, o grande
acusador. Pedir que o nome de Deus sela santifica do é pedir que, simultaneamente,
o Seu caráter seja reivindicado e o
inimigo desmascarado diante de toda a criação. Em outros termos, é pedir que
Deus apresse a erradicação do pecado. As duas petições seguintes reafirmam este
anseio.
“Venha o Teu reino”. O reino da graça foi estabelecido na primeira vinda de
Jesus. O reino por cuja vinda oramos é o da glória. Sob o reino da graça, o
domínio de Deus é parcial; nem todos se rendem a Ele. Sob o reino da glória,
todavia, haverá total harmonia com Deus, pois pecado e peca-dores terão
passado. A volta de Jesus está diretamente envolvida aqui.
“Seja feita a Tua vontade assim na Terra como no Céu”, isto é, na Terra
como é feita no Céu. A rebelião de Lúcifer teve lugar no Céu, mas se transferiu
para este mundo. O Céu, portanto, é o local onde a vontade divina é perfeitamente
cumprida. Pedir que a Terra se incorpore ao Céu no cumprimento dessa vontade,
é pedir que Deus ponha logo um fim à rebelião, e tudo volte a ser como era antes
do pecado.
“O pão nosso de cada dia nos dá hoje”. Quando o pecado se insurgiu neste
planeta, nossos primeiros pais foram avisados que, “no suor do rosto”,
comeriam o pão (Gên. 3:19). Claro que isto era parte do triste resultado da
desobediência. Com o plano da redenção, entretanto, Deus afirma que Ele dá o
pão aos Seus amados enquanto dormem” (Sal. 127:2). Isso ocorreu literalmente
por 40 anos com a queda do maná no deserto. Assim o pão é uma dádiva divina, e
devemos agradecer por ele. Cristo ilustrou esse fato nas duas ocasiões em que
multiplicou os pães, saciando multidões. Ao proferir o discurso sobre o pão da
vida (João 6), deixou claro que o verdadeiro pão do Céu é o Pai quem dá (verso
32). Em seguida, apresentou-Se como sendo esse “pão”. No “Pai Nosso” pedimos,
naturalmente, que Deus nos garanta o sustento diário do corpo, mas a idéia do
pão espiritual também está presente.
“E perdoa as nossas dívidas...” A palavra “dívidas” evoca a idéia do ano
jubileu, quando estas eram perdoadas e as propriedades penhoradas voltavam aos
seus antigos proprietários. Tudo isso nos fala do resgate providenciado na
cruz, e aponta para o futuro próximo, quando o grande jubileu trará de volta
a possessão perdida. Enquanto esse dia não chega, desfrutamos um antegozo do
jubileu em termos do perdão divino.
..assim como nós perdoamos aos nossos devedores:” Deus não nos impõe a
condição de primeiro sermos perdoadores para então nos perdoar; a medida do
nosso perdão, porém, é proporcional à medida de como o estimamos. A parábola
do credor incompassivo (Mat. 18:23-35) indica não somente que o perdão de
Deus é fruto exclusivo de Sua misericórdia (portanto, não é motivado por
nenhuma qualidade que pensamos possuir, salvo a nossa necessidade), mas também
que precisamos ser enternecidos pelo perdão. Se valorizamos o que Deus faz por
nós, será impossível que em resultado do Seu perdão, não passemos a ser movidos
por um espírito correspondente. É como Paulo ordenou: “Assim como o Senhor
vos perdoou, assim também perdoai” (Col. 3:13).
Talvez, neste ponto, a oração do “Pai Nosso” indiretamente aluda ao fato de
que todos “compareceremos perante o tribunal de Deus” (Rom. 14:10). Naquele
momento, a efetivação definitiva do perdão a nós já conferido dependerá de
como permitimos que ele nos motive o procedimento hoje. Nos termos da quinta
bem-aventurança. “bem-aventurados” os misericordiosos, porque alcançarão
misericórdia” (Mat. 5:7).
“Não nos deixes cair em tentação’~ Com a chegada dos últimos dias, o
inimigo tem sua ira aumentada, porque sabe “que pouco tempo lhe resta” (Apoc.
12:12). Isto significa empenho redobrado para desencaminhar aqueles que se
consagram a Deus. Os enganos finais serão os mais terríveis porque o diabo se
voltará com carga total contra os seguidores de Jesus, numa última tentativa de
destruí-los. Uma vez mais seus planos serão frustrados.
“Mas livra-nos do mal’~ Não somente dos perigos deste mundo mau, mas do
próprio maligno, em sua nefasta obra de destruição. Ë evidente que Deus tem
respondido a esta petição, operando milagres em favor de Seu povo em todo o
tempo e lugar. Mas é inegável que potencia]mente fomos livrados do maligno
quando Jesus depôs Sua vida na cruz. Ali foi garantida a vitória que em breve
alcançará a plenitude.
“Teu é o reino, o poder e a glória para sempre.” A doxologia reafirma o
Deus todo-poderoso como Aquele que tem recursos para ouvir e atender nossa
prece, tornando-nos triunfantes em Cristo. Se nEle confiarmos e por Sua graça
permanecermos fiéis até o fim, participaremos de Seu reino, de Seu poder e de
Sua glória.
Conclusão — No mesmo Lugar em que a Bíblia afirma
que “não sabemos orar como convém”, afirma também que o Espírito “nos assiste
em nossa fraqueza” (Rom. 8:26). Certamente esta assistência inclui uma
compreensão mais definida da Palavra de Deus, da qual decorre o fortalecimento
espiritual.
Orar conforme a oração que o Senhor ensinou coloca-nos cm sintonia com
Ele, pois esta é uma oração modelo. Ela se inicia com uma invocação do Deus
verdadeiro, em que Seu nome, Sua vontade e Seu domínio são lembrados e aceitos
incondicionalmente; prossegue substanciando as súplicas daqueles que almejam
íntima comunhão com Ele; e conclui com uma expressão de louvor e exaltação aos
quais só Deus tem direito.
Esta oração insta-nos a orar na consciência do tempo em que vivemos e na
certeza de que nossa redenção final está próxima. Então, sim, tudo o que o
“Pai Nosso” encerra terá alcançado pleno cumprimento.
José Carlos Ramos é diretor do SALT e professor de
Teologia no IAE-Campus 2,
Engenheiro Coelho, SP.
Revista Adventista setembro/2000
Sem comentários:
Enviar um comentário