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domingo, 4 de fevereiro de 2018

SANTUÁRIO EM HEBREUS 9



Algumas Observações
Sobre Hebreus 9, em
Vista da Interpretação
do Dr. Ford


I - Desejo voltar-me para a preo­cupação do Dr. Ford com a exe­gese apropriada. O assunto de adequada e bem findada meto­dologia permanece supremo. A preocupação do Dr. Ford, neste sentido, é importante e não deve ser menosprezada. Sua ênfase ao ‘próprio texto como o primeiro e o último árbitro” e à interpreta­ção de Hebreus 9 “em seu con­texto” é correta. Não estou muito impressionado com “a obra de comentaristas e tradutores” e com a alusão a “comentaristas clássi­cos” (pág. 135, etc.), nem com a autoridade que lhes é atribuida pelo Dr. Ford. Diversas obser­vações vêm à mente quanto a isso:


a)        O leitor bem informado de comentários dos séculos dezeno­ve e vinte, sobre o livro de He­breus, percebe imediatamente que não há o tipo de unanimi­dade com que o leitor às vezes de­para na apresentação do Dr. Ford. As seleções dos materiais apresentados nos Apêndices 1 a V foram efetuadas meticulosamen­te. O famoso comentário de B. F. Westcott é citado pelo Dr. Ford da maneira que segue: “O ritual do Dia da Expiação, ‘o Dia’ (Joma), está presente na mente do autor em toda essa seção da Epístola.” Isto faz parte de uma série de citações cuja finalidade é provar que Hebreus 9 (e outros trechos) tratam do Dia da Expia­ção. O fato é que a frase citada é a primeira da “Nota Adicional Sobre ix. 7. O Serviço do Dia da Expiação”, e não está bem claro o que significa “essa seção da Epístola”. Pode significar so­mente Heb. 9:7, de acordo com o título da “Nota”, mas dificilmente significará todo o capítulo 9 de Hebreus, pois essa nota é seguida de outra: “Nota Adicional Sobre ix.9. A Idéia Pré-Cristã do Sacri­fício” (Westcott, Hebrews, reedi­ção de 1974, págs. 281-292), a qual conclui dizendo: “O pesqui­sador não deixará de notar a intei­reza representativa das alusões aos Sacrifícios Levíticos na Epís­tola. São mencionados os Sa­crifícios diários (x. 11) e os sacrifí­cios anuais (ix.6 em diante; x.1); o Sacrifício do Concerto (ix. 18 em diante); e os sacrifícios que foram providos para remover as impu­rezas legais que prejudicavam a validade do Concerto pelo con­tato com a morte (ix. 13) ou na conduta comum da vida, no Dia da Expiação (v. 3; vii, 27 em dian­te).” Westcott, Hebrews. pág. 292. Assim esse comentarista afirma incisivamente que He­breus 9 tem uma base muito mais ampla que o Dia da Expiação. Este ponto não é reconhecido claramente.

b)  Como colaborador regular de artigos (cinco até agora e ou­tros em preparo) para o Theologi­cal Dictionary of the Old Testa­ment, editado por O. J. Hotter­weck e H. Ringgren, tenho a res­ponsabilidade de estudar as in­terpretações de textos do Velho e Novo Testamentos desde o tem­po de sua composição até o pre­sente. Tal estudo traz constante­mente à lembrança as várias esco­las de interpretação: judaicas e cristãs, pré-modernas e moder­nas, crítico-históricas e não cri­tico-históricas, com todas as suas variações, etc. Essa espécie de apelação indiscriminada, profusa e a grosso modo para comentários e eruditos parece revelar falta de sensibilidade a seus respectivos pontos de vista e também ao fato de que não existe o tipo de con­senso subentendido. Em outras palavras, podem ser citados co­mentaristas e eruditos para apoiar pontos de vista diferentes; muitos se contradizem uns aos outros. Contudo, a verdade ainda não veio à tona! Destarte, recorrer a comentaristas, por mais diver­gentes ou unânimes que possam  ser, não é um sucedâneo de trabalhos exegéticos e teológicos.

O  empreendimento exegético entre outras coisas, envolve esmerados; 1) estudo filológico, 2)análise gramatical e sintática, 3)
atenção contextual, 4) estudo de motivos, 5) análise da estrutura literária e 6) a progressão do pensamento do autor.

Como erudito bíblico, exegeta e teólogo que partilha com o Dr. Ford o interesse pelo significado do texto bíblico no passado e no presente, muitas vezes fico impressionado com a sua luta para haver-se com a doutrina ASD do juízo investigativo. Mas as suas conclusões, a respeito dos textos da Escritura como tais parecem estar condicionadas a um esquema teológico ao qual os textos bíblicos são obrigados a adaptar­se. Afigura-se que estão envolvi­das algumas suposições subja­centes.

II

Talvez seja conveniente exa­minar alguns pontos específicos da argumentação do Dr. Ford a respeito de Hebreus 9. Um ponto significativo nessa argumenta­ção é o termo grego ta hagia (Ford, págs. 183-186). Ele suge­re que no caso das dez vezes em
que são usadas as palavras ta ha­gia, com as possíveis exceções de Heb. 8:2;9:2; e 13:11, elas se re­ferem ao “lugar Santíssimo.” As­severa também que mesmo quan­do os tradutores verteram essa expressão por “santuário”, ela não significa todo o santuário. “Por ‘santuário’ é designado o compartimento interior, e não a estrutura bipartida.” (Pág. 184.) Algumas observações podem ser apropriadas. A primeira diz respeito ao uso do plural em He­breus e ao uso do singular em Levítico 16, na Setuaginta. A for­ma grega em Hebreus, sem levar em conta o caso, geralmente é considerada como estando no plu­ral. O singular é to hagion, mas só é usado em Heb 9:1.   O sig­nificado de “Lugar Santíssimo” para o plural ta hagia é preferido pelo Dr. Ford porque, “sem dú­vida, isto promana do uso de ‘lu­gar santo’, reiteradas vezes, em 1ev. 16, para o compartimento interior” (Pág. 184.) O fato é, porém, que em Lev. 16, na Setuaginta, não aparece uma só vez o plural  ta hagia. A versão dos Setenta emprega coerentemente o singular (Lev. 16:2, 3, 16, 17, 20, 23 e 33). Assim, a depen­dência do texto de Lev. 16 na Setuaginta de modo algum é evi­dente. É causada a impressão de que o autor do livro de Hebreus emprega o plural ta hagia de ma­neira deliberada e pra fazer dis­tinção do uso em Lev. 16, na Setuaginta. Isto é mais surpre­endente ainda quando se consi­dera que das 104 vezes em que a Versão dos Setenta emprega o plural hagia, 97 se referem a to­do o santuário, 6 ao Lugar Santo só uma ao Santo dos Santos.
O uso do termo to hagion no texto de Lev. 16 na Setuaginta não está inteiramente claro. No verso 33 a expressão to hagton teu hagiou é a tradução do he­braico miqdas haqqodes, que sig­nifica literalmente “santo santuá­rio”. Os tradutores da Setuagin­ta entenderam que a expressão hebraica no verso 33 se referia ao Lugar Santíssimo. A normal expressão hebraica para o Lugar Santíssimo é qodes qodasim (Êxo. 26:30), comumente traduzida na Setuaginta por to hagion ton ha­gion ou ta hagia ton hagion (cp.I Reis 8:6).



O autor de Hebreus emprega Hagia Hagion no capítulo 9:3 para designar o Lugar Santíssimo.



O autor de Hebreus emprega Hagia Hagion no Cap. 9:3 para designar o Lugar Santíssimo, sem o artigo do último exemplo dado na Versão dos Setenta. Só duas vezes no livro de Hebreus hagia é usado sem o artigo, a saber no Cap. 9:3 onde hagia se refere ao Lugar Santo, e no Cap.9:3, onde Hagia Hagion se refere ao Lugar Santíssimo. ( No Cap. 9:24 hagia se torna definido pelo uso de cheiropoieta, “feito por mãos”, o que sintaticamente equivale ao uso articular). Em todos os ou­tros casos (com exceção do Cap. 9:1) aparece o plural ta hagia na forma articular, O uso caracterís­tico do plural e da forma arti­culada ta hagia em Hebreus, em contraste com o cap. 9:2 e 3, onde o autor quer fazer alusão a com­partimentos específicos do santuário pode realmente denotar que ele desejava que ta hagia se referisse ao santuário de duas divisões, como um todo. Isto pode ser realçado pelo fato de que ele não adotou a forma sin­gular to hagion de Lev. 16 na Setuaginta (exceto uma vez, no Cap. 9:1). As evidências podem ser sintetizadas da maneira que segue:

A Setuaginta, em Lev. 16, só emprega o singular para fazer alusão ao Lugar Santíssimo (Vs. 2, 3 e 33). Em Hebreus, o sin­gular só é usado uma vez, e isso para todo o santuário (Cap. 9:1). Quando são mencionados o Lugar ­Santo ou o Lugar Santíssimo
(Cap. 9:2 e 3), aparece o uso do plural, sem o artigo. Em todas as outras partes aparece o plural com o artigo, e afigura-se que isto está em contraste com o uso do plural sem o artigo no Cap. 9:2 e 3, indicando que se tem em vista todo o santuário de duas divisões. A natureza do uso do plural provido de artigo, em He­breus, tem sido objeto de de­bates.
Tem-se sugerido que o plural designa dois compartimentos, tanto no santuário terrestre co­mo no celestial, segundo for o caso. Outros alegam que é um plural intensivo. O Dr. Ford prefere este último, e contesta o primeiro. O plural intensivo denota a concentração de coisas santas no santuário. Seja qual for a preferência individual, o uso do artigo e do plural ainda cons­titui uma antítese de Lev. 16 na Setuaginta e da maioria das ve­zes em que essa expressão apa­rece na Versão dos Setenta. A única vez em que o plural se re­fere ao Lugar Santíssimo (con­tra 103 outros casos na Setuagin­ta) não é um forte argumento estatístico. Visto que estamos tratando de questões filológicas, devemos estar inteirados do fato de que o plural ta hagia, como designação de todo o santuário, não é sem precedente em He­breus. Além de seu uso prado­minante na Setuaginta (97 casos dentre 104), o plural ta hagia, como designação de todo o san­tuário, é atestado no grego he­lenista (Koine). Tanto Filo (Fuga 93) como Josefo (Jewisb Wars 2.341) usam o plural para todo o santuário. O mesmo uso é ates­tado em Judite 4:12; 16:20 e I Macabeus 3:43, 59, etc. Nos Orá­culos Sibilinos 3:308 notamos que o plural ta hagia é usado para designar todo o santuário celes­tial.

Em suma, no âmbito filológi­co não há razão alguma para su­gerir que o plural articular ta ha­gia. em Hebreus, significa ape­nas o Lugar Santíssimo. As di­versas evidências que acabaram de ser consideradas apontam pa­ra outras direções. O contexto na carta aos Hebreus parece confir­mar o que foi declarado.

III

O principal ponto na exposição do Dr. Ford sobre Hebreus 9 é o verso 8 desse capítulo. Ele faz duas afirmações: 1) O termo ta hagia é o Lugar Santissimo e 2) o termo prote skene é o Lugar Santo. Isto significa que “o que o primeiro compartimento era para o segundo, o tabernáculo terrestre era para o celestial, e, portanto, o primeiro comparti­mento representava o sistema mosaico, e o segundo, a era cristã” (Pág. 144). Essa tese não é nova, pois o Dr. Ford está se­guindo aí uma tradição particular entre os comentaristas, a qual, no entanto, é vigorosamente con­testada por outros comentaris­tas igualmente capazes. Cite­mos apenas um: F. F. Bruce, sob cuja direção o Dr. Ford obteve o doutorado na Inglaterra: “Além disso, cumpre notar que, conquanto até agora o nos­so autor tenha usado ‘o primeiro tabernáculo’ para designar o compartimento externo do san­tuário, aqui [no Cap. 9:8] ele o emprega para designar o santuá­rio do ‘primeiro concerto’ [Cap. 9:1], abrangendo tanto o lugar santo como o Santo dos Santos.” —      F. F. Bruce, Hebrews [1964], págs. 194 e 195.

Consideremos ligeiramente o termo prote skene: “primeiro ta­bernáculo”, em Heb. 9:8. O vo­cábulo skene aparece pela primei­ra vez em Heb. 8:2, onde consti­tui uma alusão ao “tabernáculo” que Deus mesmo erigiu. É o “ver­dadeiro” (alethine) e o “celestial” (Cap. 8:1). O “tabernáculo” ter­restre era uma “figura [ou cópia] e sombra” das coisas celestes (Cap. 8:5). A dupla idéia de  “figu­ra [ou cópial” e  “sombra” é signi­ficativa. Evidentemente, em He­breus 8:5 é aplicada a analogia entre o original e a cópia. Isto denota que o santuário terrestre de duas divisões reflete o origi­nal santuário celeste de duas di­visões. A palavra skene se refere a todo o santuário.  Isto está em harmonia com o uso coerente na Versão dos Setenta.
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No âmbito filológico não há razão para sugerir que o plural articular  ta hagia em Hebreus, significa apenas o Lugar Santíssimo.

Em Hebreus 9:1-7 temos um raro uso lingüístico no qual a es­trutura do “santuário terrestre” (to hagion kosmikon) é descrita como “primeiro tabernáculo [ex­terno]” (prote skene) e o “segundo tabernáculo [interno]” (deuteron skene), respectivamente Lugar Santo e Santo dos Santos. Essa linguagem é conhecida nos escri­tos de Josefo (Jewish Wars, vol. 5, págs. 184, 185, 193. 194 e 195), mas não na Setuaginta. A refe­rência a prote e deutera (‘primei­ro” e “segundo”) é espacial e não tem uma forma análoga na Setua­ginta. -

Em Heb. 9:8 encontramos no­vamente a expressão prote ske­ne. A mesma expressão apare­ceu pela última vez no verso 6, onde é contextualmente o Lugar Santo do santuário. Pode pare­cer, portanto, que o autor tinha em mente a mesma idéia no ver­so 8. Mas, talvez o caso não seja este, pois o contexto (como no Verso 6) deve servir de orienta­ção.

O contexto de Hebreus 9:8 indica que o autor passa do pri­meiro concerto, com seu santuá­rio bipartido e suas limitações, para o novo concerto, com seu ta hagia, “santuário”, ao qual agora há acesso. Em outras palavras, nos versos 1 a 7 é efetuada uma descrição do santuário ter­restre do primeiro concerto, on­de o vocábulo prote (“primei­ro”), no Cap. 9:1, tem um signi­ficado temporal e seqüencial, e não espacial, estabelecendo um contraste entre o “primeiro concerto e o “novo” concerto. O “primeiro concerto tem um “primeiro” (prote) tabernáculo (Cap. 9:8). Prote aqui é tempo­ral e seqüencial, e se refere a todo o tabernáculo com dois compartimentos. A expressão prote skene, no Cap. 9:8, é, por­tanto, uma designação de todo o santuário de duas divisões, do primeiro concerto. Além disso, a palavra prote, no Cap. 9:8, não é uma designação espacial, mas temporal e seqüencial. A pro­pósito, do ponto de vista filoló­gico, um contemporâneo do au­tor de Hebreus usa prote skene para o “primeiro tabernáculo, isto é, todo o santuário que pre­cedeu o templo de Salomão (Jo­sefo, Contra Apion II. 12). Isso também constitui um uso tem­poral e seqüencial. O contexto de Hebreus 9:1-7, que fala do “primeiro” concerto é resumido no Cap. 9:8, com seu “primeiro tabernáculo”, denominado “san­tuário terrestre” no Cap. 9:1.

Em suma, o “primeiro taber­náculo” no Cap. 9:8 é o santuá­rio de duas divisões do “primei­ro ou velho concerto. Por con­seguinte, “o maior e mais perfei­to tabernáculo” (Cap- 9:11), do novo concerto é o santuário ce­lestial como um todo. Citamos A. Cody, que sintetizou a ques­tão deste modo:

“O primeiro tabernáculo [do Cap. 9:8] vem a ser o antigo ta­bernáculo terrestre em sua tota­lidade, abrangendo tanto o San­to como o Santo dos Santos, e... ‘o maior e mais perfeito taberná­culo’ do verso 11 vem a ser o san­tuário celestial.” The Heaven­ly Sanctuari and Liturgy is the Epistle to the Hebrews [St. Mei­nard, 1962], págs. 147 e 148.

Poderiam ser citadas conclu­sões semelhantes de outros eru­ditos (como F. F. Bruce e ou­tros). Afinal de contas, porém, o que é mais importante é o con­texto, e esse contexto estabelece um contraste entre o primeiro ou velho concerto e o novo con­certo. Cada um desses concer­tos tem seu santuário como um todo, seu sacerdócio e seus ser­viços para benefício dos cren­tes. A estrutura de Hebreus 8 e 9 se apresenta nos seguintes contrastes:

1.  Velho Concerto
a.   Santuário terrestre
b.  Ministério sacerdotal e su­mo-sacerdotal
c.  Acesso limitado
d.  Sangue de bodes e touros
e.  Sacrifícios repetidos
f.  Purificação da carne

    2.  Novo Concerto
a.   Santuário celestial
         b.   Ministério sacerdotal e su­mo-sacerdotal no Céu
         c.    Acesso irrestrito
         d.    O sangue de Cristo
   e.     Sacrifício efetuado uma vez por todas
         f.     Purificação da consciência


Estes contrastes só focalizam os pontos principais.

De acordo com o contexto, o termo ta hagia, em Heb. 9:8, se refere ao “maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos” (V, 11). Escreve o Prof W. Mi­chaelis: “No Cap. 9:11 . . .  o santuário celestial também é di­vidido em duas partes.” “Ske­ne”, TDNT, VII:376. Assim co­mo prote skene, no Cap. 9:8, se refere a todo o santuário terres­tre, ta hagia também se refere a todo o santuário celestial. As observações na seção que virá em seguida indicarão as provas contextuais para isso, com base na argumentação do autor de Hebreus.

IV


Agora temos de dar atenção a outras questões referentes ao contexto.

O Dr. Ford afirma que: 1o.)  O san­gue de bodes e de bezerros em Heb. 9:12 constitui uma alusão ao Dia da Expiação (Pág. 146) e  2o.) “os versos 13 a 22 de He­breus 9 não se afastam do Dia da Expiação, como alguns têm su­gerido. Pelo contrário, as refe­rências à purificação realizada pelo derramamento de sangue expressam a própria essência do ritual do Dia da Expiação” (Pág. 146). Os argumentos do Dr. Ford sobre Hebreus 9 se baseiam nes­sas afirmações. Se elas não pu­derem ser mantidas, suas con­clusões são seriamente postas em dúvida.

A frase “sangue” de bodes e de bezerros”, de Heb. 9:12, em gre­go é  haimatos tragon kai mos­chon,  e a frase “o sangue de bo­des e de touros” no verso 13 é  to haima tragon kai tauron. uma interessante diferença entre moschon, “bezerros’, no verso 12, e tragon, “touros”, no verso 13.   Essa diferença pode ser coin­cidente ou propositada. Ela re­quer maiores esclarecimentos.

Os comentaristas freqüentemente se apressam em sugerir que ambas as frases retratam o ritual do Dia da Expiação. A Se­tuaginta, porém, não emprega a ­mesma linguagem para ambos esses sacrifícios em Lev. 16. Em lugar de tragon ela emprega o vocábulo chimaros (L.ev. 16:15) e nunca emprega a palavra tauron em Lev. 16. Resumindo, ­dos três vocábulos só aparece um em Lev. 16, na Setuaginta: ­moschos. Isto é um curioso fenômeno filológico. Cumpre ter cautela com aplicações muito ­apressadas ao Dia da Expiação 

Em Heb. 9:12, a realização de Cristo é relacionada com o sangue de bodes e de bezerros”. Es­ta última parte é interpretada pelo Dr. Ford como uma alusão ao Dia da Expiação. Neste sentido ele está seguindo uma conhecida corrente de interpretação. Sugerimos, porém, que essa linha de interpretação não é correta. Podem ser apresentadas as seguintes razões: a) a dis­tinção lingüística entre “bodes e bezerros” (V. 12) e “bodes e touros” (V. 13). A língua grega indica essa distinção entre moschon e tauron. b) A distinção na seqüência: bodes e bezerros; mas em Lev. 16, novilho e bode. c) Heb. 9:12 só contém dois tipos de animais, ao passo que Lev. 16 tem três: novilho, bodes e carneiro.

Há um caso no VT em que foi usado o “sangue de bodes e de bezerros”. É a inauguração ou o começo do ministério sumo- sacerdotal de Arão no santuário ­israelita, a qual também assinalou o inicio dos serviços do santuário. Em Lev. 9:8, 15 e 22 é mencionado que o sumo sacerdote sacrificou um bezerro como oferta pelo pecado por si mesmo um bode como oferta pelo pecado em prol do povo, e se empenhou na manipulação do sangue. Depois disso e de outras ofertas, o sumo sacerdote entrou no santuário. Somos levados a pensar, portanto, que Cristo, antitipicamente, como Sumo Sacerdote celestial, é apresentado como inaugurando o ministério no santuário celestial.

A conclusão de que Heb. 9:12 toma o assunto da inauguração no tempo do VT e o aplica ao ministério de Cristo no santuário celestial é bem findada. Em outras palavras, em vez de dar ênfase ao Dia da Expiação, o qual ocorre no fim do ano cerimonial, Heb. 9:12 parece referir-se ao assunto da dedicação e inauguração que ocorre no começo do ministério no santuário celestial. Isto se harmoniza com o tema do novo concerto em Hebreus 8 e 9. O novo concerto possui um santuário celestial que é dedicado e cujo ministério é inaugurado “pelo Seu próprio sangue” (Cap. 9:12). Isto é efetuado por Cristo, “uma vez por todas”. Em contraste com o santuário terrestre, não há repetição. O sangue de Cristo tem vasta superioridade sobre o “sangue de bodes e de bezerros” (Cap. 9:12).
Uma breve resenha do uso de“bodes” e “touros” como sacrifício pode ser útil para indicar a amplitude dos contextos sacrificais: “Bodes” eram usados: a) nos sacrifícios diários das ofertas pelo pecado dos indivíduos (Lev. 4:27-35; Núm. 15:27 e 28) ou na oferta pela culpa por engano (Lev. 5);  b) na oferta mensal da Lua Nova (Núm. 28:15); c) nas festas anuais dos pães asmos (Núm. 28:17 e 24); das semanas (Pentecostes) (Lev. 23:19; Núm. 28:26-30), dos tabernáculos (Núm. 29:12-34); no Dia da Expiação (Lev. 16; Núm. 29:11) e no Dia do Ano Novo (Núm. 29: 5). “Touros” eram usados: a) nos sacrifícios pelo pecado da con gregação (1ev. 4:13-21; Núm. 15:22-26) e pelo pecado dos sacerdotes (Lev. 4:3-12); b) na dedicação dos sacerdotes e do altar (Exo. 29:14 e 35-37; Lev. 8:2 e14-17) e dos levitas (Núm. 8:5 e 8-12); c) nas ofertas queimadas por ocasião da Lua Nova (Núm. 28:11-14), cada mês; e d) na festa anual dos pães asmos (Núm. 28: 17-25), na festa das semanas (Pentecostes) (Lev. 23:15-21; Num. 28:26-31), na festa dos ta­bernáculos (Núm. 29:12-39) e no Dia da Expiação (Lev. 16; Núm. 29:7-11). Esta resenha e a comparação com outros sacrifícios de animais indicam que a seleção de “bodes” e de “bezerros/tou­ros” abrange mais amplamente as ofertas diárias, mensais e anuais do que qualquer outra lista de animais prescritos.

Estas observações podem ser­vir de cautela contra as aplica­ções ao Dia da Expiação. O plu­ral generaliza o pensamento, de modo que “o sangue de bodes e de bezerros/touros pode ser en­carado como designação abran­gente para todo o sistema sacri­fical da legislação mosaica, desde a inauguração do ministério do santuário, até os ciclos dos ser­viços diários, mensais e anuais, incluindo o Dia da Expiação, mas não se restringindo unicamente a ele. A superioridade da reali­zação de Cristo é realçada vigo­rosamente “em contraste com os sacerdotes, que entravam conti­nuamente no lugar santo, e com o sumo sacerdote, que entrava no Santo dos Santos em todo Dia da Expiação”. G. W. Bucha­nan, To the Hebrews [AB, 36; Garden City, Nova Iorque, 1972], pág. 148. A restrição de Heb. 9:12 ao Dia da Expiação não é necessária nem autorizada. Ela limita indevidamente tanto a realização do sacrifício de Cris­to como sua superioridade.

O significado de Heb. 9:13 dentro de seu contexto no capí­tulo 9 e das realizações de Cristo também requer reflexão. O Dr. Ford sugere que “Heb. 9:13 apresenta uma fusão de idéias, pois não é verdade que o san­gue de bodes e de bezerros [sic] era aspergido sobre pessoas para santificá-las. . . Temos aí uma vinculação do Dia da Expiação com o ritual da novilha verme­lha” (Pág. 148). Isto faz com que o Dr. Ford chegue à conclusão de que o autor de Hebreus sa­lienta “uma expiação completa­da no altar do Calvário, a qual dai em diante provê purificação para todas as pessoas que crêem” (Pág. 148).

O “sangue de bodes e de tou­ros, em Heb. 9:13, é realmente uma referência ao Dia da Expia­cão ? O contexto precisa decidir novamente a questão. Se a pala­vra “aspergida” (rantizousa) tam­bém deve referir-se ao sangue (além da cinza da novilha verme­lha), o que não é necessariamen­te o caso por motivos sintáticos, então não pode ser uma referên­cia ao Dia da Expiação, pois a aspersão nesse dia era efetuada no santuário e no altar, mas não sobre as pessoas. No entanto, há somente uma aspersão das pes­soas com sangue no sistema do VI’, a saber: em conexão com a cerimônia em que fui firmado o concerto. Em Êxodo 24:8, lemos que “Moisés tomou aquele san­gue e o aspergiu sobre o povo”. Em vista dessa conexão e do con­texto do concerto em Hebreus 8 e 9, e diante do contraste en­tre Hebreus 9:13 e o verso 14 em diante, onde Cristo é “o Me­diador da nova aliança” (V. 15), afigura-se que “o sangue de bo­des e de touros” é uma alusão ao ato de firmar o concerto. Isto é corroborado por Heb. 9:19. Po­de-se admitir, portanto, que aquilo que é declarado a respeito do “sangue de bodes e de tou­ros ,em Heb. 9:13, não se aplica à cerimônia do Dia da Expiação, e, sim, à cerimônia de firmar o concerto. Por conseguinte, pode­mos notar que: 1) a “fusão de idéias” não é necessária se for con­siderado o contexto imediato e mais amplo de Hebreus 9;  2) “o sangue de bodes e de touros”, no verso 13, pode ser encarado co­mo uma referência ao ato de fir­mar o concerto, o que se ajusta ao verso 14 em diante; e 3) a cin­za da novilha vermelha (V. 13) também aponta noutra direção diferente do Dia da Expiação. Heb. 9:13 pode ser interpretado como se referindo a dois tipos de contaminação: aquele que foi removido das pessoas que entra­ram na relação do concerto em que o sangue esteve envolvido (Êxo. 24:7 e 8), e o outro tinha que ver com as pessoas que se achavam cerimonialmente con­taminadas pelo contato com um cadáver e eram aspergidas com a mistura contendo a cinza da novilha vermelha. Tais atos só efetuavam a “purificação da car­ne.

As provisões dos ritos diários, mensais e anuais cuidavam da contaminação moral (Heb. 8:12). As cerimônias de Heb. 9:13 pa­recem referir-se ao estabeleci­mento do concerto e aos ritos relacionados com a novilha ver­melha. Tudo isso é contrastado com a superioridade do sacrifi­cio e do sangue de Cristo (Vs. 12 e 14), os quais têm a capaci­dade de “purificar a nossa cons­ciência de obras mortas para ser­virmos ao Deus vivo” (V. 14). A superioridade do sangue de Cristo é todo-abrangente. O contraste é entre as provisões do velho concerto, em sua totalida­de, e as do novo concerto, de que Cristo é o Mediador (V. 15). A restrição ao Dia da Expiação das consecuções de Cristo em Heb. 9:8-22 não parece ajustar-se adequadamente à argumen­tação referente ao velho e ao no­vo concerto, do autor de He­breus. Ele estabelece um con­traste entre as provisões do ve­lho (ou primeiro) concerto (Heb. 9:1 e 18; cp. 8:1-13) e as do “su­perior” (Cap. 8:6) e novo con­certo (Cap. 9:15).

A restrição de Heb. 9:12-22 ao Dia da Expiação passa por alto os seguintes fatos: 1) o cenário do concerto e a comparação do primeiro (ou velho) concerto com o concerto superior” (ou novo); 2) a referência abrangen­te ao sistema levítico de sacrifi­cios diários, mensais e anuais que envolvem sangue, segundo é expresso na frase: “o sangue de bodes e de bezerros , em Heb. 9:12; 3) a cerimônia de fir­mar o concerto, na qual era apli­cado sangue às pessoas, segundo é expresso na frase: “o sangue de bodes e de touros”, em Heb. 9:13; 4) a cerimônia de purifica­ção da contaminação cerimonial, com a aspersão da mistura da cin­za da novilha vermelha, na segun­da parte desse versículo; 5) a alu­são a “dons” e “sacrifícios” em Heb. 9:9. Estes aspectos contidos nos argumentos do velho e novo concertos indicam que o autor de Hebreus tinha em mente uma comparação todo-abrangente e abarcante. A superioridade do sangue e do sacrifício de Cristo é contrastada de modo abrangente e cabal com os sistemas e as pro­visões do velho concerto. A eficá­cia do sacrifício e do sangue de Cristo é aplicada in totem na rati­ficação do novo concerto (Heb. 9:15-22) e no ministério do santuário do novo concerto no Céu, possibilitando o acesso à presença de Deus. Substitui e cumpre completa e cabalmente o sistema levítico que abrangia tanto a con­taminação e o pecado moral e in­terior, como o cerimonial e ex­terior.

V

Temos de considerar agora a questão do acesso à presença de Deus, que envolve o caso do “véu” em Hebreus 6 e 10. O Dr. Ford sugere reiteradas vezes que a expressão “além do véu” [ou “para dentro do véu”], em Heb. 6:19 e 20, e “pelo véu”, no Cap.
10:19 e 20 se refere à cortina que separava o Lugar Santo do Lugar Santíssimo. Concordamos com o Dr. Ford que o ponto em lide, aqui, tem que ver com o acesso. No sistema do velho concerto havia acesso limitado, o qual é superado pelas realizações de Cristo na cruz. Assim, “temos confiança para entrar no lugar santo pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que Ele inaugurou para nós por meio do véu, isto é, pela Sua carne” (Heb. 10:19 e 20, NASB).

O vocábulo traduzido por “véu” é katapetasuma, que tam­bém ocorre no NT em S. Mat. 27:51; 5. Mar. 15:38 e S. Luc.23:45. A opinião dos eruditos está dividida quanto à identidade do “véu” que foi rasgado na cru­cifixão de Cristo. Diversos eru­ditos argumentam que ele era a cortina à entrada do Lugar Santo, e não o “véu” que separava o Lugar Santo do Santo dos San­tos (Th. Zahn, G. Dalman, A. Schlatter, E. Klostermann, A. H. McNeile, BT. E. Smith, E. Loh­meyer, etc.), ao passo que mui­tos outros sugerem que era a cor­tina diante do Santo dos Santos (Strack-Eillerbeck, C. Schnei­der, W. Bauer, G. W. McRae, O. Hofius, etc.). O debate entre os eruditos ainda não terminou.

O vocábulo traduzido por “véu” é katapetasuma. A opinião dos eruditos está dividida quanto à identidade do “véu” rasgado na crucifixão.

As evidências filológicas do uso de katapetasma, “véu”  na Setua­ginta, são as seguintes: Ele é usa­do como designação da “cortina” ou do “véu” diante do Santo dos Santos (chamada parôket em he­braico) em Êxo. 26:31 em diante; 27:21; 30:6; 35:12; 37:3 (MT 36:35);  38:18 (MT 36:34-36);  39:4 (MT 38:27);  40:3, 21, 22 e 26;  Lev. 4:6 e 17; 16:2 e 12(P) e 15(P); 24:3; Núm. 4:5; II Crôn. 3:14. Também é usado para designar a “cortina” ou o “véu” diante do Lugar Santo, chamada em he­braico masak (Exo. 26:37; 37:5 [MT 36:37]; 39:19 [MT 39:40]; 40:5; Núm. 3:10) ou parôket  (Lev. 21, 23; Num. 18:7 [KBL, 779]). Em cinco casos ele tam­bém traduz a “cortina” à entrada do pátio do santuário (Êxo. 37:16 [MT 38:18]; 39:19 [MT 39:40]; Núm. 3:26; 4:32; 3 Kgs 6:36B. Em suma, a Versão dos Setenta emprega o vocábulo katapetas­ma  para três “véus” ou “cortinas”, e não apenas para duas.

Na literatura que não é bíbli­ca, katapetasma é usado para os três “véus” ou “cortinas” do san­tuário e do templo, e para a do pátio. Josefo emprega essa pala­vra para a “cortina” à frente do pátio em Ant. VIII. 75.90; Bell. 5:212, e para as que ficavam na frente do Lugar Santo e do Lugar Santíssimo, em Bell. V.219; Ant. VIII. 75:90;  XII.250. Filo usa katapetasma para a cortina dian­te do Lugar Santo (spec. leg. 1. 171, 274) e diante do Lugar San­tíssimo (spec. leg. 1. 231; Vit. Mos. II. 86). Katapetasma tam­bém é usado para a “cortina” diante do Lugar Santo em Si­rach 50:5; 1 Macabeus 4:51; Car­ta de Aristeas 86, e para a que ficava diante do Lugar Santíssi­mo, em 1 Macabeus 1:22;  4:51;  Protev. Jas. 10:1.

Com base nestas evidências filológicas, não seria correto afir­mar que katapetasma é um ter­mo que só designa o “véu” diante do Santíssimo. As evidências fi­lológicas da Setuaginta e de ou­tros autores helenistas não cris­tãos dão margem a diversas pos­sibilidades; a própria Versão dos Setenta admite três “cortinas” ou “véus” diferentes.

Em Hebreus 6:19 encontra­mos a expressão te esoteron teu katapetasmatos. O vocábulo eso­teros é uma preposição impró­pria usada com o genitivo, signi­ficando neste caso “o que está para dentro (atrás ou além) da cortina” (Bauer-Arndt-Gingrich, Greek-Engl. Lexicon, pág. 314). A Setuaginta também usa essa frase em Exo. 26:33; Lev. 16:2, 12 e 15, onde ela parece referir-se à “cortina” diante do Santíssi­mo. Em Núm. 18:7, a Setuagin­ta diz endothen tou katapetas­matos, “dentro do véu”, uma alusão, mui provavelmente, àcortina na entrada do Lugar San­to. A segunda passagem da Se­tuaginta que se refere definida-mente ao “véu” na entrada do Lugar Santo é Núm. 3:10: eso tou katapetasmatos, “dentro do véu” . As evidências filológicas na Setuaginta indicam que há seis passagens que contêm a ex­pressão “dentro do véu (ou cor­tina)”, todas as quais partilham a palavra katapetasma, mas elas variam por empregarem ou 1) a preposição imprópria esoteron, ao se referirem ao véu diante do Lugar Santíssimo, ou 2) os ad­vérbios enclothen e eso ao faze­rem alusão ao véu diante do Lu­gar Santo em Núm. 18:7 e 3:10, respectivamente. Em rigor, perfeita correlação terminológi­ca, no grego, com Heb. 6:19 só se encontra em Êxo. 26:33 e Lev. 16:2, 12 e 15, ao passo que a idéia “dentro do véu” do Lugar Santo aparece com advérbios em Núm. 3:10 e 18:7. Devemos, porém, ser cautelosos em tirar conclusões inflexíveis e apres­sadas, pois em Heb. 10:20 temos diatou katapetasmatos, “pelo véu”,  e em Heb. 9:30 autor des­se livro alude ao Santo dos San­tos como estando “por trás do segundo véu”: meta te deuteron katapetasma. Destarte, há duas maneiras de expressar “atrás de”: uma usa esoteron, com o geni­tivo, como a Setuaginta, e outra emprega meta, com o acusativo, e não se encontra na Setuaginta. O autor de Hebreus revela nova­mente certo grau de indepen­dência em sua linguagem. Po­de-se admitir que ele tinha em mente o “segundo” véu do san­tuário ao usar as palavras to eso­teron tou katapetasmatos. Se de fato quer dizer isso, não está sen­do coerente com o uso posterior no Cap. 9:3. Visto que ele não está usando a mesma expressão “por trás do segundo véu”, como no Cap. 9:3, será que não tinha em mente algo mais amplo do que apenas o “véu” diante do Santo dos Santos?

Deixemos de lado as conside­rações filológicas e passemos a tratar das que se relacionam com a idéia de acesso no sistema le­vítico e com a presença da divin­dade, para urna possível solução. Seria um erro supor que a pre­sença de Deus no santuário da dispensação do VT se restringia ao Santo dos Santos. Que Deus Se achava presente ali não pre­cisa ser demonstrado com argumentos. Embora a arca simbolize o trono de Deus, o VT não “prende” Deus a ela, nem admite uma só vez que Seu lugar é unicamente ali. Não se pode ne­gar que duas áreas especiais são formadas dentro do santuário denominadas Santo dos Santos e, a maior, Lugar Santo. A des­peito dessa diferença dentro do santuário, é impossível despre­zar a interconexão entre os dois compartimentos, os quais, na realidade, são partes insepará­veis de uma só estrutura.

Várias designações usadas pa­ra o tabernáculo no VT são deveras instrutivas quanto à idéia da presença de Deus no santuá­rio como um todo. A palavra mis­kan, “habitação”, como um no­me para o tabernáculo indica que ele é o “lugar da Sua habitação” ou a morada de Sua presença. Constitui a designação para todo o santuário (Lev. 15:31; 17:4; Núm. 16:9; 17:28; 19:13; 31:30 47; II Crôn. 1:5; 29:6). Um no­me comum para o santuário/ta­bernáculo é “tenda da congrega­cão”,  usado 130 vezes (Exo. 27: 21 a Exo. 40; Lev. 1:1 a 19:21) [39 vezes]; Núm. 1:1 a 31:54  [55 vezes]; Deut. 31:14), que é o lugar onde Deus Se revelava a Seu povo. A “tenda da congre­gação” é completamente identi­ficada com a presença do Senhor

Várias designações usadas para o tabernáculo no VT são deveras instrutivas quanto à idéia de Deus no santuário como um todo.


com Seu povo (Lev. 16:16). Es­sas indicações podem servir co­mo meio de ilustrar que Deus não deve ser encarado como es­tando restringido ao Santo dos Santos, que há uma intercone­xão entre os dois compartimen­tos do santuário e que Deus não estava encerrado num deles, no santuário terrestre.

Transferir a noção da presen­ça de Deus no Santo dos Santos, sobre a Terra, para o santuário celestial é errôneo em dois sen­tidos: a) a presença de Deus so­bre a Terra não se restringia ao Santo dos Santos; e b) é impró­prio raciocinar da cópia na Terra para o original no Céu. A visão do trono por Ezequiel favorece a compreensão de que o trono de Deus e Sua presença não se restringem a um só local. O Prof. Menahen Haran  escreve o se­guiute sobre I Crôn. 28:18: “O vocábulo mercabah (“carro”) denota um trono que pode estar em movimento, pois o trono de Iavé nos Céus (segundo é des­crito na visão de Ezequiel) não está restrita a um só lugar.” – Temple and Temple-Service in Ancient Israle [Osford, 1978], pág. 253. O conceito da presença e Deus é essencial para a devida compreensão do acesso a Deus. A idéia de acesso, que é tão central em Hebreus, se acha li­gada ao caminho (hodos) que agora está aberto (cp. Heb. 9:8). No sistema terrestre só havia acesso limitado. Tanto os homens como as mulheres —  o povo como um todo —   não tinham um meio de entrar no Lugar Santo, o qual só era franqueado aos sacerdo­tes. O ‘véu’ à entrada do Lugar Santo impedia o acesso às pes­soas. Os sacerdotes não podiam entrar no Santo dos Santos, que era protegido por outro véu; só o sumo saccrdote tinha acesso a esse lugar, e apenas uma vez por ano.

Em vista dessas limitações de acesso tanto ao Lugar Santo co­mo ao Santo dos Santos, que sig­nifica ter Cristo entrado “além do véu” ? Pode ser sugerido que o autor de Hebreus empregou o vocábulo “véu” (katapetasmo) em sentido coletivo. Pode estar conferindo a katapetosma um significado que abranja coletivamente o “véu” tanto diante do Lugar Santo como do Santo dos Santos. O uso da Setuaginta e o de escritores helenistas não cristãos, não se opõe a esta sugestão. A análise das restrições do aces­so das pessoas tanto ao Lugar Santo como ao Santo dos Santos parece requerer a compreensão de que o “véu” representa cole­tivamente a ambos.

A entrada de Cristo para “den­tro do véu” —   coletivamente os véus que separavam as pessoas do Lugar Santo e do Lugar San­tíssimo —  não requer que Ele tenha começado o Seu ministé­rio em ambas essas divisões no santuário celestial. Ao entrar pa­ra “dentro do véu”, Cristo em­penhou-Se na dedicação de todo o santuário celestial (cp. Dan. 9:24). Após a dedicação. Ele apli­ca os benefícios de Seu sangue e sacrifício como Sacerdote e Su­mo Sacerdote celestial. Com Ele e por Seu intermédio podemos entrar além do véu e ter acesso a Deus, que está presente em todo o santuário.

Estas considerações destinam-se a incentivar o estudo de Hebreus 9. O estímulo para renovado pensamento, reflexão e estudo suscitado pelas sugestões do Dr. Ford  sobre Hebreus 9 certamente tem sido útil.  Seu ponto de vista sobre esse capítulo precisa ser avaliado diante do próprio texto e contexto imediato e mais amplo. Embora eu não esteja de acordo com a tese central do Dr. Ford sobre Hebreus 9, espero que estes breves comentários dêem ense­jo a mais reflexão e estudo da parte de todos nós que temos interesse no significado e na ver­dade da Palavra de Deus para o nosso tempo.


Revista  “O Ministério Adventista” nº 2 Mar-Jun 1981

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